Heródoto (484-425 a.C.) fundou a Ciência Política ao escrever o diálogo dos três persas, no qual sete generais depõem o regime dos magos, em revolta de aguda violência (“…e se a noite não viesse interromper o massacre, não escaparia um só”); cinco dias após, com a situação calma, reúnem-se para debater que governo adotariam, e três deles argumentam. O primeiro, Otanes, pela democracia; o segundo, Megabizo, defende a oligarquia; Dario, por fim, quer a monarquia.
Para o pensamento clássico, o regime predominante no Brasil é oligarquia, governo de poucos; aqui, regime híbrido, oligárquico com elementos de democracia, com a possibilidade de um dia tornar-se democracia. Para defendê-la, Otanes diz que o governo de um só homem não é “nem suave, nem bom” e condena os abusos: “o tirano odeia as pessoas honestas e parece deplorar que elas ainda existam”, pior, tiranos fazem mal às mulheres; ao final, elogia a isonomia, “a mais bela palavra”, regime suave e bom. “Suave” aqui significa doce, prazeroso (hedús, em grego, de onde hedoné, prazer, e hedonismo).
Há algo de belo no regime democrático. Era no que pensava Christian Meier quando escreveu A Política e a Graça – Antropologia Política da Beleza Grega (1987), uma análise estética do regime ateniense, a elegância da cidadania clássica. Qual seria a beleza do regime democrático? Primeiramente, viver sem o abuso de poder, próprio das autocracias. Segundo: desfrutar de liberdade, condição de quem não é escravo. Mas há mais. Isonomia é regime de boas maneiras, liberalidade e tolerância, como elogia Péricles na célebre oração fúnebre, o melhor elogio à democracia: “A liberdade é o princípio de nossa vida pública, e na nossa vida cotidiana não vivemos mutuamente desconfiados, e não nos irritamos com nosso vizinho porque vive a seu modo, nem o olhamos com este ar de desaprovação que, por ser inofensivo, não deixa de ser incômodo”. Com o valor da cultura – “instituímos muitos entretenimentos para o alívio da mente fatigada” e “sabemos conciliar o gosto pelo belo com a simplicidade e o gosto pelos estudos com a coragem”. Por fim, o exemplo para os que não compreendem a beleza eficiente da democracia “para nós, a palavra não é nociva à ação; o que é nocivo é não se informar pela palavra antes de se lançar à ação”.
Há mais prazeres e belezas na democracia. Quando assistimos em assembleia à eloquência de um concidadão, adquirimos felicidade e confiança: não estamos sós, avançamos, rumo a um fim benéfico para todos; ele fala o que penso, aprendemos e doravante temos algo precioso em comum. Esse lindo sentimento predominou na audiência pública promovida pela Assembleia Legislativa sobre o problema do cais Mauá, na quarta-feira passada, quando várias gerações de cidadãos e muitas autoridades, com diferentes percepções, concordaram em diversos pontos, com bastante informação e diálogo. Foi belo evento político, diante da sintomática ausência daqueles pouco afeitos ao prazer democrático, confortáveis na omissão (há presentes para os ausentes?); neste caso, tratam-se dos provocadores da polêmica, o consórcio e seus compadres no poder público, que optam por fazer feio.
Não passaríamos pelo desgaste desta polêmica se a questão fosse conduzida com a “suave” democracia, isto é, com diálogo, análise e produção cooperativa do bem comum. Ao longo do processo, produziríamos um projeto cobiçado por todos, a concórdia apressaria todos os passos e faria da inauguração uma festa inesquecível para Porto Alegre. Acordem, gestores e empreendedores, acordem concidadãos em letargia: há um outro caminho, belo, e seu percurso é fadado à felicidade, nossa meta maior, imperativa.
*Francisco Marshall escreverá mensalmente no novo Caderno DOC