*Jornalista e crítico musical
No tempo da velocidade, do raso, do efêmero, do monetarizado, o que dizer de um homem que "gasta" mais de 30 anos de sua vida em um projeto que contradiz tudo isso? Esse homem se chama André Luiz Oliveira, 67 anos, baiano radicado em Brasília desde 1991 e que desde a década de 1980 se dedica obstinadamente a revelar em música os segredos do livro Mensagem (1934), único em língua portuguesa que Fernando Pessoa publicou em vida, com poemas sobre personagens da história/glória de Portugal. Para marcar os 80 anos da morte do poeta, André está lançando, com o título Mensagem, uma caixa de madeira reunindo três CDs, dois DVDs, um álbum de fotos e o próprio livro. O formato remete ao famoso baú de Pessoa, descoberto anos depois da morte dele, em 30 de novembro de 1935, com mais de 27 mil textos inéditos.
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A caixa é um espanto: os 44 poemas ganham vida nas vozes de 32 grandes intérpretes brasileiros de três gerações, como Elizeth Cardoso, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mônica Salmaso, Zeca Baleiro e Ná Ozzetti, além de portugueses, como António Zambujo, Dulce Pontes, Carlos do Carmo, e do cabo-verdiano Mário Lúcio (do grupo Simentera). O primeiro disco é ainda do tempo do LP, foi lançado pelo selo Eldorado em 1986, com 12 músicas, tendo como faixa de abertura Padrão, por Caetano Veloso - "O esforço é grande e o homem é pequeno./ Eu, Diogo Cão, navegador, deixei/ Este padrão ao pé do areal moreno/ E para diante naveguei." (...)
Esse não é o poema que abre o livro, André não se preocupou com a ordem, foi musicando os que primeiro "chegavam". O mesmo ocorreu com o Disco 2, que só viria 17 anos depois, em 2003, com 13 músicas e lançamento independente. Mais 12 anos e enfim o Disco 3, de 2015, encerrado por O Quinto Império, na voz de Gil: "Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa - os quatro se vão/ Para onde vai toda idade./ Quem vem viver a verdade/ Que morreu D. Sebastião?". André parece se valer de uma das faces de Pessoa, a mística, para falar de seu processo criativo.
- Minha música é intuitiva. Sou tão impregnado desses poemas que as músicas vinham ao natural. E agora, ouvindo-as pela ordem do livro, fiquei impressionado.
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A porta de André para a arte foi o cinema, na efervescência tropicalista de Salvador. Estreou em 1969 com o longa Meteorango Kid: O Herói Intergalático, filme cult do cinema marginal. Sua última obra é o documentário O Exu Iluminado, de 2012, sobre o artista plástico Mário Cravo. Fugindo da repressão, em meados dos anos 1970 foi para a Índia com a mulher, que lá engravidou, e decidiram ter a filha Rama em Portugal, onde viveram de 1977 a 1979, movidos também pela euforia pós-Revolução dos Cravos. Ele diz que a temporada em Lisboa foi uma espécie de redenção. Violonista aplicado, por necessidade conseguiu trabalho em uma casa noturna tocando violão.
- Comecei lá a tomar corpo como músico, e aquela atmosfera do fado, os amigos que ia fazendo, o aprofundamento em Pessoa, mudaram minha vida. Quando voltei ao Brasil fui morar no Guarujá, litoral de São Paulo, e de repente me vi dando música aos poemas, logo fiz 15 canções. Eu estava alimentado por uma paixão pela vida e a obra dele, atordoado de como me reconhecia nos seus escritos.
Desde o início André pensou em vozes conhecidas para interpretar as músicas e levar adiante sua mensagem. Praticamente todos os artistas que convidou aceitaram o desafio, e falam sobre o que sentiram nos DVDs que integram os discos 2 e 3. Além de imagens das gravações em estúdios e de Portugal (o Tejo, ruas de Lisboa, os lugares frequentados por Pessoa etc.), os DVDs incluem entrevistas e depoimentos de intelectuais como Carlos Felipe Moisés, professor aposentado da USP, que prefaciou a primeira edição brasileira do livro.
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Mesmo gravados com tanto espaço de tempo entre um e outro, mesmo "desobedecendo" a ordem do livro, mesmo tendo muitas variações (fado, baião, vira, morna, toada, afro-brasileiros, música sacra) e com tantos intérpretes diferentes, os três discos têm grande unidade. O "instintivo" André revelou-se um compositor de amplos recursos, com sólido apoio em música clássica e certeza na escolha dos arranjadores. O primeiro disco tem arranjos de Francis Hime, o segundo de Leandro Braga, e o terceiro deles e mais alguns. Dezenas de instrumentistas foram mobilizadas para as orquestrações sinfônicas, sem contar violonistas, acordeonistas, bandolinistas, percussionistas.
Independentemente do que mais Oliveira venha a produzir, a caixa Mensagem já tem status de obra-prima.
MENSAGEM
De Fernando Pessoa e André Luiz Oliveira.
Caixa de madeira com três CDs, dois DVDs,
o livro Mensagem e álbum de fotos de Portugal feitas por Rama de Oliveira.
Versal Editores, R$ 299,60.
Álbuns avulsos lançamento Warner Music: CD 1 R$ 25,90, CD/DVD 2 R$ 59,90 e
CD/DVD 3 R$ 59,90.