*Jornalista, autor de "A Enchente de 41" e coautor de "Águas do Guaíba", com lançamento dia 8/11 na Feira
Historicamente, Porto Alegre sofre pelo menos uma grande enchente a cada 10 anos - às vezes, mais de uma. Nestas ocasiões, normalmente as "chuvas de São Miguel" desabam nas semanas em torno de 28 de setembro, dia de devoção ao santo que encarou Lúcifer. O bravo Miguel ficou, assim, marcado pelo imaginário popular como "santo chovedor", fama injusta, já que as enchentes nada têm a ver com sua espada vingadora. O verdadeiro vilão é El Niño, como os pescadores colombianos chamaram o fenômeno natural de superaquecimento do Pacífico, que lhes escondia os peixes, como um castigo do Menino Jesus.
Quando os açorianos chegaram a Porto Alegre, na metade do século 18, acamparam na parte posterior da península, diante do arquipélago, onde havia profundidade suficiente para seus navios, e os ventos não eram tão fortes. Impedidos de seguir até as Missões, seu destino final, os casais foram ficando. Mesmo abandonados pelas autoridades, transformaram a aldeia em vila, freguesia e cidade. Abriram a Rua da Praia, paralela à margem, com uma altura prudente de cerca de dois metros em relação ao nível do Guaíba, no pé da encosta de uma grande colina, e a partir dela começaram a se organizar. As enchentes estavam então perfeitamente integradas ao cotidiano da cidade. Ao receber águas acima de seu conteúdo normal - 1,5 bilhão de litros -, o Guaíba transbordava sobre as zonas mais baixas e inicialmente vazias, ao Norte e ao Sul. Passado o ciclo, tudo voltava ao normal.
Saiba como foi a última grande enchente de Porto Alegre, em 1967
Com a área central ocupada por moradores, as autoridades precisaram de espaço para instalar novos equipamentos públicos, e a cidade começou a avançar sobre o que antes era o Guaíba: uma quadra para instalar o atracadouro de pedra, mais 80 metros para construir o prédio da Alfândega, outros 80 metros para o Mercado Público e, por fim, 100 metros para o novo Cais. Além disso, o Poder Público fazia vistas grossas para os aterros particulares de quem queria ampliar seu patrimônio, especialmente ao Norte. A cidade, então, iniciava uma infindável queda de braço com o manancial aquático que lhe deu vida.
Entre setembro e outubro de 1873, São Miguel, ou melhor, El Niño, fez chover água suficiente para transbordar o Guaíba em 3,5m acima de seu nível. A maior enchente do século 19 atacou a cidade ao Norte e ao Sul, e pela primeira vez chegou ao Centro. Alagou a aterrada avenida Sete de Setembro e deixou submersa a Doca das Frutas, ao lado do recém-construído Mercado Público.
Em 1926, Porto Alegre seria castigada por 16 dias de chuvas. Somente em 28 de setembro, Dia de São Miguel, a precipitação alcançou o recorde de 103 milímetros. As cheias suplantaram em 12cm a altura do novo cais, construído três metros acima do nível do Guaíba. A Estação Férrea, na Rua Voluntários da Pátria, foi inundada, várias fábricas como a Gerdau, a Bromberg e a Guahyba tiveram que paralisar as atividades, e era possível andar de barco em muitas vias.
Apenas dois anos depois, quando as empresas ainda construíam muradas para se proteger, nova enchente de São Miguel desabou dos céus, em proporção ainda mais trágica: 14 dias de chuvas, cem ruas alagadas e 30 mil flagelados. A recém-construída Usina do Gasômetro teve sete de seus oito motores danificados, deixando boa parte do Centro às escuras. Quando as chuvas pararam, um vento Sul devolveu à cidade as águas que escoavam através da Lagoa dos Patos, fazendo com que o Guaíba atingisse a altura de 3,2m.
Nível do Guaíba atinge maior marca em 74 anos
Naquele ano de 1928, os meteorologistas calcularam em 19 anos o Tempo de Recorrência, ou seja, o prazo provável para que se repetissem as variáveis causadoras de uma enchente daquela proporção. Oito anos depois, contudo, uma enchente ainda maior desabou sobre a cidade. Foram 16 dias de chuva, 3,22 metros de altura do Guaíba, e a repetição da rotina de alagamentos, flagelados e prejuízos econômicos.
O pior estava por vir. Em abril e maio de 1941, Porto Alegre seria vitimada pela mãe de todas as enchentes. Desta vez, a culpa não foi do El Niño e sim de seu fenômeno inverso, que recebeu o nome de La Niña. Nestes meses, ao invés do aquecimento, o Pacífico Tropical é resfriado pelo excesso de ventos da América do Norte. As consequências, no entanto, são as mesmas e, no caso de 1941, em proporções gigantescas. Foram 22 dias consecutivos de chuvas que, além dos estragos costumeiros, deixaram a cidade ilhada. Correios, telégrafos, energia elétrica, transporte fluvial, aéreo e ferroviário, Mercado Público, cinemas e cafés do Centro foram diretamente afetados e pararam de funcionar. Nada menos de 70 mil pessoas - um quarto dos moradores da cidade - tiveram que abandonar suas casas, e mais de 600 empresas fecharam suas portas - algumas definitivamente.
Um vento sudoeste empilhou as águas do Guaíba, fazendo com que atingissem o recorde absurdo de 4,76 metros. Pela primeira vez, o Guaíba subiu pelo Cais e avançou sobre o coração da cidade, a Rua da Praia, onde lanchas substituíam automóveis e serviços regulares de barcos passavam a funcionar nas ruas centrais.
Pelo cálculo do Tempo de Recorrência, nova enchente com aquela intensidade só se repetiria em 370 anos. Ainda assim, as autoridades pensaram em formas de defender a cidade. Ali, foi decidida a construção da cortina de proteção, que seria formada pela elevação de duas avenidas ao Sul e ao Norte, e uma muralha entre o Centro e os armazéns do Cais.
Nas ilhas, volta para casa é só o começo da retomada da rotina
Este conjunto só seria construído 30 anos depois. Neste período, curiosamente as enchentes cessaram, como se El Niño, o Guaíba e a cidade tivessem firmado um pacto. A única exceção ocorreu em 1967, quando as águas subiram 3,18 metros e cobriram a imensa área aterrada defronte à Avenida Praia de Belas. como se quisessem tomar de volta seu território surrupiado. Este aterro engoliu mais 300 metros do Guaíba, em um trecho de cinco quilômetros entre a Usina e a antiga Ponta do Melo, onde hoje está a Fundação Iberê.
O Muro da Mauá foi construído por causa da enchente de 1941 e pela combinação de dois fatores: o chamado "milagre econômico", quando o dinheiro entrava no país a juros baixos, e a vigência da ditadura militar, quando nada se discutia.
Na enchente de 2015, ouvimos de vários lados que o Muro, enfim, teria provado sua eficácia. Não é para tanto. As águas mal encostaram no Cais e o fechamento das comportas se deu mais por prevenção do que necessidade. Ainda penso que o custo-benefício para a cidade é caríssimo do ponto de vista urbano.
Mais eficazes do que o Muro são os dois diques que protegem as áreas alagadiças ao Sul - Avenida Beira-Rio - e ao Norte - Avenida da Legalidade e da Democracia. Os bairros ainda alagam pelo volume de chuva e não por invasão do Guaíba. O problema reside aí. Impedido de percorrer seu trajeto normal pela nova topografia da cidade, o Guaíba só pode crescer em direção às ilhas, originariamente formadas por pescadores - atividade drasticamente reduzida pela poluição que vitima o lago - e, hoje, compostas de populações que não encontram lugar na cidade e se sujeitam aos riscos recorrentes.