Em Porto Alegre, uma das cidades com maior número de pets por domicílio, moradores de rua também são referência no cuidado com animais. Mesmo vivendo sob viadutos, árvores ou lonas, a falta de dinheiro ou de um lar constituído não é motivo para que falte carinho e alimentação. Há sim, casos de maus tratos e desleixo. Mas ao andar pelas ruas da Capital, a reportagem verificou que mesmo com os donos sob efeitos da pobreza, uso de drogas ou álcool, os mascotes de rua são bem alimentados e esbanjam em convivência, um artigo de luxo para muitos pets de apartamento.
Na Praça Brigadeiro Sampaio, ao lado da Usina do Gasômetro, cachorreiros do Centro costumam se encontrar para passear com seus cãezinhos diariamente. É ali que Daniel Silveira, 45 anos, vive com a "filha" Lois Laine. Batizada assim desde que ele a salvou de um atropelamento na Avenida Osvaldo Aranha, a cachorrinha vive há nove meses sob os cuidados do reciclador. O tempo da amizade foi suficiente para fazer nascer em Daniel um novo jeito de encarar a vida: a chegada da cusca fez ele beber menos, sair de uma depressão que o abatia há tempos e voltar a jogar capoeira:
- Andava desanimado, sem vontade de fazer as coisas, dormia em qualquer lugar. Agora temos a nossa casinha, ela tá sempre junto aonde eu vou, é a razão da minha vida - dispara feliz sobre a guaipeca de olhar doce como seu pelo caramelo.
Enquanto prepara no fogão a lenha o menu do almoço, que na última quinta-feira foi feijão com bacon, arroz e carne de panela, Lois Lane espera amarrada na coleira a hora da próxima refeição. Com o dinheiro que ganha com a reciclagem, Silveira compra sacos de ração e sachês de carne, que Lois ganha quando se comporta.
- Ela está amarrada agora porque comeu coisa que não devia. Tem que aprender a se comportar - repreende o dono.
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Há alguns quilômetros dali, o estradeiro Nicolas Araújo da Silva sabe que suas noites dentro do carrinho estacionado sob as árvores da Redenção serão zeladas pelo quarteto Piá, Amarelo, Nina e Black. Desde que saiu da Rio Pardo, há 30 anos, vive pelas estradas. Já caminhou longas distâncias, como na viagem a pé de Alagoas até o Santa Catarina, ganhando a vida entre bicos em colheita de abacaxi e auxiliar de serviços gerais.
Desde que formou a trupe de amigos caninos e estacionou a vida no principal parque da Capital, não foi mais viajar. Nem a trabalho. Teme que não cuidem bem dos cachorros. A amizade é tão forte - sobretudo com Black - que ele desconfia que os animais entendem o que ele sente. Certa vez, quando passou uma semana doente, sem levantar da cama nem para comer, o peludo foi em busca de comida e trouxe para ele o que encontrou.
- Ele achou uma sacola de costela. Pegou uma e deixou as outras para mim, viu que eu precisava me alimentar - conta.
Com ajuda das "madrinhas", Silva consegue ração para a tropa. As roupas que vestem também vêm de doações. O essencial, diz ele, é carinho e alimentação. O resto é bobagem.
- Os meus cachorros eu tenho que respeitar, senão eles não me respeitam.
Essa também é a lógica do casal David Lacerda da Silva e Geisiane Raquel, que vivem sob o Viaduto Dom Pedro I, no Menino Deus. Há pouco tempo, a atenção dedicada ao amigo Urso é dividida entre os filhotes Belinha e Mimi, que ganharam de uma amiga. Para comer, não há muitas regras: eles comem de tudo, ração, bolo, o que tiver. A única ordem é obedecer a carteirinha de vacinação, que Silva guarda debaixo da barraca de lona:
- O veterinário nos dá as vacinas. Todo mês eles vêm aqui buscar e eles para tomar. A próxima é no dia 27 - diz o dono, atento.