Faz parte do desenvolvimento de qualquer ser humano pensar que é Deus no princípio de sua existência. O fato de certas autoridades continuarem se acreditando divinas, pelo contrário, é um sintoma que pode se tornar uma doença social.
A interpretação é da psicanalista Lisia Leite, integrante do Centro de Estudos Psicanalíticos e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre e uma das autoras do livro Novos Tempos, Velhas Recomendações sobre a Função Analítica - Freud 100 Anos Depois (Sulina, 2013).
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O lado sombra da Justiça: o que explica os desvios éticos cometidos por quem deveria ser a imagem da lei
Entrevista: Lisia Leite
Como a psicanálise vê o caso de abusos de autoridades praticados por magistrados, como juízes que se acham deuses?
Podemos pensar em termos de autoridade, que é mais amplo do que pensar só no caso de juízes. Do ponto de vista da psicanálise, qualquer ser humano passa por uma fase da vida em que se acha Deus. É natural, normal, necessário, faz parte do desenvolvimento psíquico. Isso costuma acontecer quando o bebê tem uma experiência de fusão com a mãe. É a ilusão de que pode tudo. Para que o psiquismo possa atingir um estado de bom funcionamento, é necessário que isso seja em algum momento interditado. Aí entra a função paterna, que pode ser exercida por qualquer pessoa, e coloca limites. É preciso uma interdição que faça com que cada um de nós reconheça que existe uma lei maior do que nós. Qualquer profissional adulto que ocupe o lugar da lei precisa conseguir se submeter a uma lei e se dar conta de que ele não é a lei, é um representante dela, que é o que falha nesses casos que tu mencionas.
Diante da sucessão de casos de abusos cometidos por autoridades, o que isso revela sobre nossa sociedade?
A sociedade está doente disso. Todas as figuras de autoridade estão tendo o mesmo tipo de problema. As instituições, a Presidência, o hospital, a escola, etc. Qualquer instituição que deveria se ocupar de ser a representante da lei está com a lei em fracasso. Por isso a gente está vivendo a situação caótica do país atualmente. O caso desses juízes é um exemplo disso, um fracasso de algo que deveria conter a transgressão. Na sociedade atual, estamos coletivamente vitimizados por um fracasso da lei. Aí ficamos pensando, por exemplo, que tem um grande corrupto, mas aquele pequeno corrupto, ou o que faz delação premiada, quase merece elogio. Não é assim. A lei está fracassando para todo mundo. Isso indica que o limite está em falência na sociedade.
Por que esses casos parecem estar aumentando?
No Brasil a gente saiu de um período de ditadura para um período de abertura. Saímos de um exercício de lei na base da força e da repressão, que se desfaz para virar uma terra sem lei. Me parece que isso faz parte de um processo. Saímos de uma determinada ordem, que era ruim, para uma desordem que tambem é ruim. Mas sou otimista: espero que isso nos leve para um momento de reorganização. Antes não se podia nada, na ditadura. Agora podemos tudo. Temos que poder julgar o que pode e o que não pode. É um valor ético que se coloca como medida da tua ação. Estamos em uma época em que ninguém acha que a ação tem limite. É uma questão do poder. Toda vez que alguém ocupa um lugar de autoridade, é convocado a exercer esse lugar. Se não houver algo que barre isso, a pessoa pensa que pode tudo.
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