O novo patrono da Feira do Livro é um homem expansivo em mais de um sentido da palavra. Frequentador assíduo da Feira do Livro, está sempre disposto a puxar conversa. Fala com gestos amplos, rosto erguido, como se interpretasse discursos no palco da vida. Por vezes, responde questões com versos, alheios ou próprios. Idade? "Minha idade eu não sei / nem existe quem me diga / Sou apenas um menino / com lembranças muito antigas", responde de bate-pronto, citando seu poema Doze Voltas em Torno de Si Mesmo (ele tem 74 anos, a propósito). Seu método de escrita? Ele cita Otto Lara Resende: "Escrever só faz sentido quando o que escrevemos passa por nossas veias".
Coronel também é um autor que vem expandindo seus interesses como criador. Com uma trajetória sólida como compositor nativista, autor de canções referenciais do cancioneiro tradicionalista, como Gaudêncio Sete Luas e Cordas de Espinhos, em parceria com Marco Aurélio Vasconcellos, também é um poeta em atuação desde os anos 1960, com 53 livros publicados, incluindo histórias infantis e infanto-juvenis e compilações de causos campeiros. O escritor bageense também atua como publicitário - é diretor institucional da Agência Matriz, em Porto Alegre - e prepara a estreia no universo da crônica com textos memorialísticos sobre a infância passada no interior do Estado.
- Tenho como marca na criação uma busca incessante por não me repetir. Então, saio da comédia gaúcha para escrever livro infantil, crônica, história de teatro, procuro não ser herdeiro de mim mesmo. Não digo que com isso não se perca a nitidez. Talvez fosse mais fácil fazer letras de músicas durante 50 anos, talvez fossem até melhores. Mas sempre tive essa angústia de inovar - explica o poeta, ao falar da constante inquietação que o faz se arriscar em mais de um gênero.
Zero Hora - O sr. lembra qual foi sua primeira Feira do Livro?
Luiz Coronel - Acho que foi o lançamento do Saturnino Desce ao Pampa, um livro infantil. Chovia a cântaros, o pessoal chegava lá pulando valetas alagadas. Lembro que vendi 15 livros e saí muito desapontado, mas culpei não a minha falta de talento, e sim o temporal. Isso já faz bem uns 30 anos.
ZH - Depois de ser tantos anos indicado, qual a sensação de ser o patrono?
Coronel - Digo uma frase que não é modesta, mas é extremamente sincera. Se tu tens a sensação de que não chegaste com as mãos vazias, tu achas que é um reconhecimento te escolherem como símbolo dos escritores, então tu recebes isso com a maior naturalidade, como um gesto de afago. Guardo a frase do Lima Duarte quando ele recebeu um prêmio: "Vencer não é vencer ninguém, é tornar-se símbolo de um esforço comum". O patrono representa livreiros, editores, escritores, essa legião de pessoas que acredita que a literatura tem um papel de encantamento e conscientização forte e consistente. Não sei se televisão, revistas, jornais terão a capacidade de dizer algo sobre o Rio Grande do Sul como Erico Verissimo, em O Tempo e o Vento, ou Flaubert sobre a mulher, em Madame Bovary, ou Kafka sobre o homem entregue à burocracia. Me parece que os grandes depoimentos humanos estão guardados nos livros. Os livros são os guardiões da experiência humana.
ZH - A Feira, inevitavelmente, cresceu nesses 58 anos. Ao ponto de muitos reclamarem que o evento hoje é grande demais, que perdeu aquele caráter de confraternização quase paroquial. Qual é a sua opinião a respeito?
Coronel - Acho que é o preço do crescimento das coisas. Eu vejo isso acontecer com todas as coisas que crescem, o problema todo é não perder o foco. Mas acho que o Pavilhão de Autógrafos ainda é uma grande confraria de escritores e seus amigos. A própria escolha dos patronáveis já é uma aproximação. Nós, os 10 candidatos que formavam a listagem, conversamos, rimos e brincamos juntos. Colocar a cada ano esses escritores em convívio já é uma forma de confraternização. Eu me tornei amigo de vários escritores através da Feira do Livro. O Charles Kiefer, por exemplo, seria uma pessoa distante de mim, e hoje é alguém com quem tenho muita intimidade por essa circunstância de ser candidato a patrono. A Jane Tutikian hoje é uma amiga com um abraço fraterno. Há um legado de aproximação. É como tu morares em uma cidade pequena, e a cidade crescer. Quando os moradores forem 100 mil ou um milhão, o encontro nas ruas e nas praças não terá a mesma frequência de quando a cidade tinha 10 mil habitantes.
ZH - O que o sr. está lendo atualmente?
Coronel - Estou fazendo o Dicionário Carlos Drummond de Andrade, para o Grupo Zaffari. A cada ano, mergulho na obra de um autor. No ano passado, foi Fernando Pessoa, antes foi Shakespeare, e isso me afasta de outros escritores. Me sinto muito penalizado por não poder acompanhar novos autores gaúchos. Inclusive nem tive tempo de ler o livro de uma menina que trabalhava aqui na agência e foi apresentada pela imprensa como revelação, a Carol Bensimon.
ZH - Uma obra de arte é uma aposta contra o tempo, para a posteridade. Muda alguma coisa que esta aposta seja feita hoje, quando tudo o que parece valer é um presente que dura segundos?
Coronel - Estás tocando em um ponto em que o Vargas Llosa também toca: antigamente, fazer arte era querer dar um grito que rompesse a treva, era uma busca da eternidade igual àquela do homem que foi ao fundo da caverna e desenhou búfalos e bisões. Mas ainda acho que, mesmo que tenhas amadurecido como ser humano, mesmo que a velhice já morda o teu calcanhar, mesmo que saibas que a posteridade é um jantar para o qual não serás convidado, mesmo que aches que acreditar na perenidade do que fazes é dar um grito no escuro, porque tudo é destinado ao esquecimento, abotoaduras e catedrais, mesmo assim, vamos com Rainer Maria Rilke: "Tu crias porque é tua condição criar, e tu não poderias deixar de fazer isso". Como dizia o Marquês de Sade: "Se me tirarem a caneta, escrevo com sangue, se não tiver sangue, escrevo com fezes na parede". É aquela coisa de não saber deixar de escrever. Acho que o pior inimigo do artista, seja ele músico ou escritor, e nesse ponto o escritor é mais feliz que o músico, que parece ter uma data menor de validade, é a ansiedade do eco.
ZH - Mario Quintana comentou em seus versos: "Eu não entendo nada da questão social, / eu faço parte dela, simplesmente". O sr. está lançando uma compilação da sua poesia social. Como o sr. entende a questão social?
Coronel - Vou ser bem franco: tu estás falando com alguém que começou a vida dando aula de História, aos 19 anos. Toda a minha base cultural é histórica. Todo o meu pensamento é político. Acompanho o julgamento do mensalão, a política do Brasil e do mundo. Como é que, na hora de criar, esses temas vão estar ausentes? O Mario Quintana era um personagem angelical, que viveu uma vida absolutamente presa à literatura, traduzindo Proust, Maupassant. Era um cara de cultura francesa, a quem a História não mordia. Quintana era um ser especial, de uma capacidade lírica maravilhosa, de uma ironia sedutora, um homem ranzinza que se tornou um velhinho querido. Gosto da poesia dele, me influencia sua leveza, sua constância amorosa, mas vou lá para o Drummond, para "o combate duro com a vida". Drummond tem poemas pateticamente políticos, provando que ele era um ser histórico. E eu sou um ser histórico. Isso é uma virtude literária? Pode até ser um defeito, mas se for defeito, assumo.
ZH - A Esperança e o Desalento reúne toda a poesia social composta pelo sr. em várias fases da carreira. Ferreira Gullar já comentou que a poesia dele nos anos 1960 e 1970 era engajada pela pressão do momento histórico, e que aqueles poemas não refletem mais algumas das posições políticas que ele tem hoje. E com o sr. , acontece o mesmo?
Coronel - Claro. Se quiseres saber um pouco do meu pensamento político, penso que a grande cilada política é o poder sedutor que as utopias dos anos 1960 ainda têm. Foram anos revolucionários, só que a História escolheu outro caminho. O socialismo, que tinha uma vocação solidária maravilhosa, permitiu que o tumor da burocracia se desenvolvesse. As esquerdas deveriam pensar mais: o que aconteceu com a derrocada do socialismo? O capitalismo, com todos os seus padecimentos, com a sua desumanidade, desenvolve técnicas de produção mais adiantadas. E o mundo socialista fica à deriva. E mais: nenhuma experiência socialista deixou de vir junto com o totalitarismo. Todas trouxeram em seu bojo a experiência política dominadora, não foram democráticas em sua execução, e isso foi um problema. É a frase do Octávio Paz: o século 19 potencializou a liberdade e esqueceu a igualdade; e o século 20, quando potencializou a igualdade, esqueceu a liberdade.
ZH - Falando da sua infância: o sr. ainda é marcado por essa infância passada no Interior?
Coronel - Muito. Sou súdito disso. Como o cavalo, que, quando envelhece, começa a apontar a cabeça para o lado da querência, como diz o gaúcho. Meu pai morreu quando eu tinha dois anos e meio e deixou sete filhos. Minha mãe era chapeleira. Só no ano passado fui concluir que eu tenho sempre chapéus em casa porque eu morei com minha mãe até os dois anos e meio, três anos, e ela era chapeleira. Isso ficou no meu inconsciente, e cada peça da minha casa tem chapéus, algo que só fui decifrar 70 anos depois. E depois começou o período difícil da diáspora dos filhos.
ZH - Como foi isso?
Coronel - Uma irmã foi para São Paulo com um tio, um irmão foi embora com um tio rico, outro, com um tio pobre, outro ficou vagando por uns tempos, de lá para cá. Eu sou um desses que ficaram vagando até parar na casa de um tio chamado Djalma, um solteirão beato, de olhos azuis, feito só de bondade e caridade. A minha tia usava uns oclinhos de John Lennon e uma saia longa arrastando, e me mandava tomar banho olhando para cima, para não ver "as partes pecadoras". A minha avó, que tinha ciúmes do carinho do meu tio comigo, dizia: "Bota esse guri a trabalhar". E o tio Djalma respondia: "Criança tem que estudar e brincar, mamãe". Minha avó me colocava para dormir com quatro cordinhas nas extensões do cobertor, para que o pecado não subisse até a cama. E essa infância um pouco desprotegida talvez me desse uma certa agressividade, um senso crítico mordaz que me fazia escrever versos contra os padres, que os meus colegas de aula liam e davam gargalhadas. Até o padre saiu a percorrer as redondezas da minha casa falando para os vizinhos que não era para andar comigo porque eu era filho de comunista e viraria comunista também. Meu pai era comunista, morreu com 34 anos.