
Deve começar a ser discutido nos próximos meses, no Congresso Nacional, o projeto de lei 4/2025, que revisa e moderniza o Código Civil brasileiro. Com 274 páginas, a proposta traz mudanças relevantes no que diz respeito ao direito sucessório, ou seja, a heranças.
O texto aborda questões contemporâneas sobre o assunto, como procedimentos em relação a bens digitais, reprodução assistida post mortem e abandono afetivo, além de atualizar o direito do cônjuge e ampliar a autonomia privada na sucessão.
O PL foi elaborado ao longo de oito meses por uma comissão de juristas, presidida pelo ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Luis Felipe Salomão, a pedido do então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O texto já foi apresentado no parlamento no início do ano e aguarda despacho para ser discutido pelos senadores.
Os principais pontos
O trâmite do projeto no Congresso deve ser longo. Além das questões de direito sucessório, o texto propõe uma ampla revisão do Código Civil, uma peça muito importante da legislação do país, e propõe revisões, por exemplo, sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo e interpretação de contratos empresariais, entre outros temas que tendem a gerar divergência entre os parlamentares.
O advogado e professor Mário Luiz Delgado, que foi o coordenador e relator da subcomissão de direito das sucessões, estima que o novo Código Civil deve levar de dois a três anos para entrar em vigor.
Zero Hora destaca abaixo alguns dos principais pontos propostos a respeito das heranças.
Requalificação do cônjuge
Conforme Delgado, uma das principais mudanças apresentadas na proposta é em relação ao direito do cônjuge à herança. De acordo com o novo texto, ele deixa de ser um herdeiro mandatório.
— O que acontece é que o código atual foi concebido numa época em que o casamento era indissolúvel, em que não havia divórcio no Brasil. Então, para fins de herança de direito sucessório, o legislador da época achou que entre os membros da família, aquele que deveria ser o mais privilegiado deveria ser o cônjuge. Não dá pra você pensar numa situação que foi pensada para um casamento indissolúvel e achar que essa situação hoje é ok, que está atual — comenta Delgado.
Com isso, o cônjuge deixa de dividir a herança com os descendentes ou ascendentes e passa a apenas ocupar a terceira posição na linha sucessória. Ou seja, o cônjuge só receberá herança, em casos sem testamento, se o falecido não tiver filhos, netos, pais e avós vivos.
O advogado destaca que essa mudança não interfere no patrimônio a que a pessoa tem direito em caso de comunhão de bens no matrimônio.
— Ele (cônjuge) continua com todos os direitos, e até mais. Ele ganha no casamento mais direitos, porque a gente colocou alguns bens que não entravam na comunhão e que passam a entrar, então, a gente fortalece a posição do cônjuge no casamento, até porque ele só é cônjuge enquanto está casado, e na sucessão, a gente deixa ele lá numa posição abaixo dos descendentes e dos ascendentes — detalha.
Ampliação da autonomia privada na sucessão
Atualmente, só é possível tomar decisões sobre a sucessão de 50% do patrimônio. A outra metade é a chamada herança legítima, que é destinada e dividida igualmente entre os herdeiros necessários.
A legítima deve ser mantida em 50% do patrimônio, pela proposta, mas o novo texto traz instrumentos que ampliam e facilitam o planejamento sucessório. Caso o projeto seja aprovado como foi apresentado, será possível:
- criar condições para que o herdeiro acesse o bem, como uma idade mínima, por exemplo;
- destinar uma parcela maior da legítima a um herdeiro que seja vulnerável;
- deserdar em casos de abandono afetivo — atualmente, só é possível em situações graves, como homicídio ou tentativa contra o dono do patrimônio;
- fazer testamento com mais facilidade, como gravando um vídeo;
- decidir quem será o inventariante;
- e o processo judicial de registro e cumprimento do testamento será extinto e passará a ser feito diretamente no cartório.
O professor Delgado explica que as mudanças fazem com que o dono do patrimônio tenha mais voz na própria sucessão.
— As pessoas vão poder planejar e dizer como querem. Por exemplo: eu tenho uma indústria, meus filhos são pequenos e eu só quero que eles assumam a indústria quando atingirem 25 anos e cada um fizer uma faculdade de administração. Enquanto isso, se eu morrer antes, a herança vai ficar sob a administração de outras pessoas que eu escolher — exemplifica.
Atualização tecnológica e social
O novo texto também inclui no Código Civil situações mais específicas da sociedade atual que não podiam ser previstas quando ele foi criado. Como é o caso da inclusão da herança digital e de limites em relação à reprodução assistida feita após a morte do dono do patrimônio.
O novo cenário tecnológico fez com que um novo capítulo fosse inserido no Código Civil somente para tratar dos bens digitais. Em relação ao direito sucessório, o projeto prevê como devem ser tratadas, por exemplo, contas monetizadas em redes sociais.
O relator explica que os bens digitais foram diferenciados em patrimoniais e existenciais:
— Para citar como exemplo, a gente colocou que as situações de natureza existencial, que dizem respeito à vida privada das pessoas, como é o caso das mensagens do Instagram ou WhatsApp, etc, elas só serão transmitidas seu houver um ato de vontade do titular da conta. Já os patrimoniais, como perfis comerciais, não. Esses podem ter previsão em testamento, mas se não tiver, como qualquer outro bem patrimonial, ele vai se transmitir aos herdeiros.
Delgado menciona que algumas plataformas estabelecem regras sucessórias que, muitas vezes, podem ser contrárias à vontade do titular. O novo texto impede que essas normas se sobreponham à vontade do dono do patrimônio.
Já em relação à reprodução assistida post mortem — caso a pessoa tenha material genético congelado, o que permitira que ela tivesse filhos após a morte — o projeto traz o período limite de cinco anos para que o embrião tenha direito a herança, caso seja gestado e nasça. O objetivo dessa mudança é trazer mais segurança aos herdeiros necessários, já que o material genético pode ficar congelado por tempo indeterminado.
Revisão do Código Civil
O objetivo da proposta é modernizar o código que começou a ser elaborado em 1969, teve sua tramitação iniciada em 1975 e só entrou em vigência em 2002. Conforme o advogado e consultor jurídico Blair Costa D’Avila, essa atualização do texto é necessária, pois ele foi escrito de acordo com uma sociedade que não reflete a atual.
— O direito vem atrás da sociedade, e não à frente. O Código Civil é, indiscutivelmente, a parte mais estruturante da nossa sociedade, por isso, não tem como fazer um novo, mas revisar. É como tirar uma nova fotografia da nossa interação social. O Código Civil velho tirou uma fotografia da sociedade lá de trás, é preciso atualizar — comenta D’Avila.
Ele explica que a sociedade atual vive situações que não são previstas no código vigente. A falta de um regramento específico faz com que surjam processos judiciais para discutir questões que a lei não esclarece.