As duas principais instâncias da Lava-Jato estão na mira do Poder Judiciário. A partir das 9h desta quarta-feira (31), uma auditoria determinada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) irá investigar eventuais irregularidades cometidas na condução da operação pela 13ª Vara Federal de Curitiba, no Paraná, e pela 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em Porto Alegre.
A decisão foi tomada pelo corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, após sucessivas denúncias remetidas ao CNJ sobre a atuação dos magistrados envolvidos nos julgamentos. Em portaria publicada nesta terça-feira (30), Salomão diz que a ação se justifica pela “existência de diversas reclamações disciplinares em face dos juízes e desembargadores” que atuam nos processos.
A inspeção tramita sob sigilo e será conduzida por três magistrados - um desembargador federal, um juiz federal e outro estadual -, com previsão de encerramento na sexta-feira (2). Auxiliados por três servidores do Judiciário, eles poderão vasculhar documentos e computadores, bem como interrogar quem achar conveniente à correição, inclusive os três membros da 8ª Turma.
Para tanto, o CNJ determinou a disponibilização de salas adequadas, com equipamentos para gravação em áudio e vídeo. Quem for chamado a depor pode ter o telefone celular recolhido para garantia de incomunicabilidade. Tais medidas são usuais em auditorias do CNJ.
A ofensiva, porém, ocorre em meio a um confronto aberto entre a primeira e a segunda instância da operação. Na semana passada, o TRF4 afastou o juiz federal Eduardo Appio, titular da 13ª Vara, por suspeita de ameaça a um filho de um integrante da 8ª Turma. Segundo a decisão da Corte Especial Administrativa do tribunal, Appio teria telefonado para o advogado João Eduardo Barreto Malucelli, filho do desembargador Maurício Malucelli.
Appio tem 15 dias para apresentar defesa prévia no TRF4. Nesta quarta-feira, ele será ouvido pelo CNJ sobre o caso. No telefonema, Appio teria se passado por um funcionário da Justiça Federal, perguntando a João Eduardo se ele “não está aprontando nada?”. Ao afastá-lo, o TRF4 diz “existir muita semelhança entre a voz do interlocutor da ligação telefônica suspeita e a do juiz federal”.
João Eduardo é sócio do juiz original da Lava- Jato, o hoje senador Sergio Moro, e da mulher dele, a deputada federal Rosangela Moro, em um escritório de advocacia em Curitiba. Já Maurício Malucelli era o relator da Lava-Jato na 8ª Turma, sendo o responsável por conduzir os processos e dar o voto inaugural em cada julgamento.
Em abril, já desgastado por sucessivas críticas ao fato de ter um filho trabalhando com Moro, ele pediu para deixar o posto. Em seu lugar assumiu outro membro da 8ª Turma, o desembargador Loraci Flores de Lima. O novo relator também mantém relações com investigadores da Lava-Jato.
Loraci é irmão do delegado da Polícia Federal Luciano Flores de Lima, responsável pela condução coercitiva do então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, e de grampear a ex-primeira-dama Marisa Letícia. Assim como Malucelli, Loraci já teve de se afastar das funções em virtude dos vínculos familiares. Em 18 de maio, ele se declarou impedido de atuar nos processos envolvendo o ex-ministro Antonio Palocci.
O terceiro integrante da 8ª Turma é Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Pertencente a uma das mais tradicionais famílias do judiciário gaúcho, Lenz presidiu o tribunal no ápice da Lava-Jato. Nesse período, classificou como “irretocável” a sentença de Moro que condenou Lula à prisão no processo do triplex do Guarujá e, depois, o manteve na cadeia, pondo fim a um prende e solta que teve seis decisões judiciais contraditórias envolvendo o petista em um único domingo de 2018.
Em Curitiba, a inspeção também visa a juíza Gabriela Hardt, substituta da 13ª Vara durante o afastamento de Appio. Gabriela já havia assumido o cargo em 2019, após Moro pedir exoneração para integrar o governo Jair Bolsonaro. À época, ela condenou Lula no processo do sítio de Atibaia, mas teve a sentença criticada por incluir trechos idênticos à decisão anterior de Moro no processo do triplex. Em outra ocasião, teve sentença anulada por copiar, como seu, trecho de alegações finais do Ministério Público. Gabriela pediu transferência para Florianópolis, mas aguarda a escolha de um novo substituto.
Procurados, o TRF4 e a 13ª Vara decidiram não se pronunciar sobre a correição. No tribunal, a decisão provocou sobressalto nos gabinetes dos desembargadores na manhã desta terça-feira (30). Nos bastidores, porém, já era esperada uma reação ao enfrentamento das duas instâncias. No auge da Lava-Jato, quando a 8ª Turma era composta pelos desembargadores Leandro Paulsen, Victor Laus e Gebran Neto, o ambiente era outro: o colegiado confirmou 87% das sentenças de Curitiba.
As desavenças passaram a se tornar frequentes em fevereiro, após a posse de Appio na 13ª Vara. A primeira contenda envolveu o principal delator do esquema de corrupção na Petrobras, Alberto Youssef. Assim como Lula em 2018, o doleiro foi alvo de um prende e solta que por duas vezes antagonizou decisões de Appio e Malucelli.
Atualmente, há 19 apelações criminais da Lava-Jato aguardando decisão no TRF4, nenhuma envolvendo figurões da política ou do mercado empresarial como era rotina antigamente. Já na 13ª Vara há cerca de 240 processos referentes à operação, sendo 62 ações penais em andamento e outros 70 procedimentos correndo em sigilo.
Na cúpula do Judiciário, em Brasília, a investida do CNJ é atribuída a dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Amigos de Salomão, inclusive com defesa da indicação do corregedor nacional de Justiça para uma vaga no STF, eles estariam incomodados com os rumos das divergências entre os principais magistrados da Lava-Jato. A correição, dessa forma, seria uma maneira de apaziguar os ânimos e devolver serenidade às decisões judiciais.