O ano de 2022 deverá ser lembrado nos livros de História como o período em que a sociedade brasileira se partiu em duas. Duas facções políticas, demarcadas pelo uso do verde-amarelo ou do vermelho, foram cindidas pela disputa eleitoral em busca da Presidência da República de forma inédita desde a redemocratização do país.
A cizânia política cortou amizades de quem não partilhava a mesma preferência partidária, afastou parentes e culminou em atos de violência como o assassinato de um guarda municipal e dirigente petista em Foz do Iguaçu, no Paraná, em meados de julho. Marcelo Arruda foi abatido a tiros durante sua festa de aniversário de 50 anos, decorada com a imagem do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por um radical bolsonarista que acabou agredido a chutes por participantes do evento depois dos disparos. Para cientistas políticos, as animosidades devem se reduzir à medida que o calendário se distancia da data da eleição, mas há dúvidas se o tempo também conseguirá cicatrizar o corte que se abriu no tecido social da nação.
— Creio que essa polarização não veio para ficar, porque o país não suporta uma coisa dessas. Uma coisa é a polarização política, mas o problema é que ela veio acompanhada da disposição à violência. Pelo menos, espero que não tenha vindo para ficar. O desafio será tomar medidas explícitas e sistemáticas para distensionar politicamente o país, como a revisão da política que facilitou o acesso às armas e a proteção de populações que foram muito hostilizadas, como os indígenas e quem produz ciência e cultura — avalia o cientista político Hermílio Santos, coordenador do Centro de Análises Econômicas e Sociais da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul (PUCRS).
A cientista política e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Maria do Socorro Sousa Braga é um pouco menos otimista:
— O resultado eleitoral mostrou que o grupo que estava no poder sai ainda bastante fortalecido. Como a sociedade está muito dividida, acredito que essa divisão vai permanecer. Apesar disso, sob o ponto das forças políticas no Congresso, a polarização deve se reduzir porque o grupo que deixa o poder não terá as mesmas moedas de troca para agregar os partidos.
Nas ruas, nas redes, no futebol
A cisão colocou de um lado majoritariamente eleitores homens, pessoas de renda mais elevada e a população evangélica a favor de Jair Bolsonaro e, de outro, mulheres, a intelectualidade e a fatia mais pobre da sociedade em prol de Lula. A pequena diferença registrada no segundo turno — 50,9% a 49,10% em favor do petista — demonstra o delicado equilíbrio entre as alas políticas, que também se alimentam da rejeição ao representante do campo oposto.
O desafio será tomar medidas explícitas e sistemáticas para distensionar politicamente o país, como a revisão da política que facilitou o acesso às armas e a proteção de populações que foram muito hostilizadas
HERMÍLIO SANTOS
Coordenador do Centro de Análises Econômicas e Sociais da PUCRS
Esse cenário, que já transparecia nas pesquisas de opinião, se materializou nas manifestações de rua. Os bolsonaristas realizaram atos de massa ao longo do primeiro turno e fizeram das festividades do 7 de Setembro um exercício de demonstração de força. O então candidato à reeleição trocou o tradicional tom institucional dos discursos de seus antecessores nessa data por uma retórica salvacionista que aprofundou o clima bélico:
— Sabemos que temos pela frente uma luta do bem contra o mal, um mal que perdurou por 14 anos em nosso país — declarou a uma multidão em Brasília.
Lula usou as redes sociais para responder, em vídeo:
— Em vez de levar aos brasileiros uma mensagem de paz, união e esperança, o presidente da República utilizou a data para fazer campanha eleitoral e ofender seus adversários.
As manifestações favoráveis ao PT ganharam as ruas de forma mais visível nas semanas seguintes, por meio de comícios e caminhadas nas principais cidades brasileiras.
A disputa encarniçada puxou para a briga no campo político até celebridades e artistas. O cantor Gusttavo Lima, apoiador de Bolsonaro, teve seu nome vaiado todas as vezes em que foi mencionado durante o prêmio Multishow, por exemplo, enquanto Gilberto Gil chegou a ser intimidado por bolsonaristas no Catar, durante a Copa do Mundo.
A camisa da Seleção Brasileira também acabou sequestrada pela contenda ideológica passando a uniformizar os defensores do presidente, antes da eleição, e os manifestantes que pediram intervenção militar na frente dos quartéis depois de contados os votos que deram a vitória a Lula. A Copa do Mundo, iniciada pouco menos de um mês após o segundo turno, serviu para resgatar a tradicional camiseta amarela do cativeiro político.
Até o presidente eleito se deixou fotografar utilizando o uniforme da CBF ao lado da esposa, Janja, em meio à competição. A equipe brasileira passou a concentrar a atenção e a torcida dos brasileiros, o que acabou gerando inconformidade em uma parte dos acampados pró-intervenção. Por meio de redes sociais, circularam apelos para a vestimenta padrão nos protestos substituir a chamada amarelinha por peças brancas ou camufladas.
Hermílio Santos sustenta que o clima de tensão que caracterizou 2022 também foi amplificado pelas ameaças ao sistema democrático mesmo antes dos protestos nos quartéis.
— Foi um ano de muita incerteza política, em que se gastou muita energia por não se saber se o resultado das urnas seria respeitado. Desde a primeira eleição após a ditadura, em 1989, jamais havíamos tido esse tipo de preocupação, que gerou instabilidade na sociedade, na economia e no setor privado — analisa o professor da PUCRS.
O que virá pela frente?
Outras incertezas serão carregadas 2023 adentro, como a capacidade da terceira gestão de Lula à frente do Planalto de manter a governabilidade diante da contrariedade de expressiva fatia dos brasileiros e de um Congresso em parte alinhado ao projeto de Bolsonaro.
— Um dos desafios será estabelecer relações com uma parcela dos parlamentares que só conhece uma forma de lidar com governos, que é ter acesso facilitado ao Tesouro. Como manter a governabilidade sem se tornar refém do centrão ainda é um grande mistério — sustenta Santos.
No outro lado do espectro ideológico, uma das questões para se prestar atenção ao longo dos próximos meses será a disposição de Bolsonaro de deixar para trás o fardo da derrota e se manter como líder popular da extrema direita. Nas semanas seguintes à derrota para Lula, o ainda presidente se isolou e mostrou-se triste nos poucos eventos oficiais de que participou a ponto de chorar diante das câmeras.
Para Maria do Socorro, será preciso altas voltagens de energia para manter a fidelidade da base bolsonarista na população sem as facilidades apresentadas pelo poder emanado de Brasília.
— Uma coisa é ser presidente e estar pautando os assuntos do dia e da semana. Sem estar em arenas de poder, ou na mídia, teremos de ver como o clã Bolsonaro vai atuar, se vai seguir ativo nas redes sociais. A extrema direita costuma trabalhar com alta intensidade de mobilização. Sem isso, corre o risco de ir diminuindo aos poucos — acredita a professora da UFSCar.