Idealizador da Lei da Ficha Limpa, gestada a partir de um projeto de iniciativa popular com 1,6 milhão de assinaturas, o advogado e ex-juiz (no Tribunal de Justiça do Maranhão) Márlon Reis não esconde a decepção com os rumos do Brasil. Cofundador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), o jurista de 51 anos detecta um desmonte dos mecanismos de controle no Brasil e lamenta os novos escândalos políticos no país da Lava-Jato. De Goiânia (GO), por telefone, ele analisa as recentes mudanças na legislação criada para tolher irregularidades, avalia o desempenho do governo de Jair Bolsonaro, eleito com a promessa de acabar com malfeitos no governo federal, e fala da experiência pessoal que viveu em 2018 – ano em que concorreu a governador no Tocantins, Estado em que nasceu, pela Rede (hoje está no PSB) e, apesar da derrota, pôde “vivenciar a política por outro lado”.
A Câmara dos Deputados aprovou, no fim de junho, mudanças na Lei da Ficha Limpa. O que está por trás disso?
Está por trás uma antiga inconformidade de setores atrasados da política brasileira e também parcela do mundo jurídico que não se conforma com as mudanças que a sociedade proporcionou em matéria de inelegibilidades. Havia, antes da Ficha Limpa, um sistema fraco de controle nos registros de candidatura, e a lei mudou isso, de forma extremamente moderna e eficiente e com um grande apoio popular. Isso nunca foi bem aceito por alguns setores.
A lei surgiu a partir de um projeto com quase 2 milhões de assinaturas. Por que na época houve tamanha mobilização e hoje a sociedade parece não dar atenção a isso?
É uma competição com o drama da morte pela pandemia, somado aos graves escândalos políticos nos quais o Brasil está mergulhado e a todos os escândalos relacionados ao coronavírus. O que é lamentável é que setores do Congresso se aproveitem de um momento como este para tentar modificar a Lei da Ficha Limpa.
Também está em curso a alteração da Lei da Improbidade Administrativa. Outro retrocesso?
É outro retrocesso e que também está relacionado indiretamente ao tema das inelegibilidades, porque uma das maiores causas de inelegibilidades são justamente as improbidades administrativas. De um lado, se relaxa o controle dos atos de improbidade, e, de outro, se diminuem as cautelas em relação aos registros de candidaturas. E tudo isso vai somando uma gama de agentes que praticam condutas gravíssimas e que vão permanecendo incólumes, inatingíveis pelo sistema de controle.
É exagero dizer que há um movimento para afrouxar os mecanismos de controle?
Não é exagero. É evidente. É um movimento orquestrado, que se aproveita de um momento de pandemia na expectativa de fazer isso de maneira despercebida.
Tem ligação com as eleições de 2022?
Sim. Aliás, o timing é a prova disso. Essas mudanças legislativas atuais abrirão as portas para a corrupção em 2022. O que acontece é que a legislação, da forma como a lei está posta hoje, leva a grande número de barrados para 2022, especialmente ex-prefeitos que querem se candidatar a deputado. Essas medidas, em conjunto, liberam uma massa de candidatos que hoje estão impedidos de participar.
O que o senhor pensa sobre o fim da operação Lava-Jato?
Lamento profundamente, porque realmente houve um desmonte da operação, isso está muito claro. Houve um completo esvaziamento. Mas há que se admitir, também, que houve algumas posturas talvez exageradas no âmbito da Lava-Jato, que ajudaram nesse processo.
É lamentável é que setores do Congresso se aproveitem de um momento como este para tentar modificar a Lei da Ficha Limpa. É um movimento orquestrado, que se aproveita da pandemia na expectativa de fazer isso de maneira despercebida.
O ex-juiz Sergio Moro chegou a ser visto como herói nacional, e a Lava-Jato ganhou um status inimaginável. Quais as consequências desse desfecho?
Tudo é um processo de aprendizado. A luta contra a corrupção não pode ser feita por heróis. Tem de ser feita com base no binômio controle institucional e controle social. Isso se dá a partir da construção de verdadeiras colunas republicanas e não a partir de ativismo ou do protagonismo de indivíduos. Essas lições nós estamos aprendendo desde a época do Collor (ex-presidente Fernando Collor de Mello), que se apresentava como caçador de marajás. Muito antes, aliás, com Jânio Quadros, com a sua vassoura para varrer a corrupção. O que precisamos é de controle social e institucional, realizados de forma republicana. Felizmente, os movimentos sociais de controle social que acompanho se robusteceram, não diminuíram por conta desses fatos.
Como avalia a suspeição de Moro? Concorda com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)?
Eu gostaria de fazer uma análise mais geral sobre esse assunto. Na verdade, houve uma decisão tomada pelo juiz Sergio Moro que não foi a mais adequada para quem havia presidido esses processos, que foi a de integrar o governo Bolsonaro. Isso foi uma ducha de água fria em muitos segmentos e abriu um flanco para todo o tipo de conclusões. Ninguém saberá adentrar as motivações internas de Moro, mas, do ponto de vista externo, esse gesto não deveria ter sido realizado.
Como ex-juiz, o que o senhor pensa sobre o teor das mensagens trocadas entre Moro e os procuradores da Lava-Jato? Isso é comum no meio jurídico?
Não é comum. O juiz tem o dever legal de receber as partes, mesmo fora das audiências. Hoje tenho visto isso sendo realizado inclusive em companhia de servidores para evitar que esses encontros sejam feitos reservadamente. São encontros no gabinete, públicos, registrados na agenda. Tudo o que escapa a isso não é saudável em se tratando de uma república. Esse episódio deveria inclusive ensinar essa lição. Quem sabe normas mais claras possam estipular como deve se dar o acesso das partes e procuradores aos magistrados? Eu daria essas recomendações que mencionei. Isso já é adotado em muitos gabinetes e deveria ser algo mais alastrado e institucionalizado.
É uma ideia absurda essa (a proposta de voto impresso). As grandes formas de fraude estavam ancoradas na existência de papel no processo. Esses votos impressos darão margem a riscos gravíssimos. Talvez seja isso o que se deseja.
Com a suspeição de Moro, o ex-presidente Lula volta a ser elegível. O que esperar de 2022?
Como jurista, concordo que o ex-presidente Lula é completamente elegível no cenário atual. Não há nada que o impeça. Decisões de grande repercussão foram tomadas, e a mais recente delas invalidando até mesmo as delações premiadas que aconteceram, o que inviabiliza as investigações e compromete as denúncias apresentadas. Deixa tudo na estaca zero. Feita essa observação do plano jurídico, como cidadão, vejo que a tendência é de uma ultrapolarização em 2022. Isso já houve em 2018. A diferença é que a candidatura do ex-presidente Lula tem mais vitalidade do que a de Fernando Haddad, de tal maneira que pode se esperar um confronto ainda mais forte.
Considera viável uma terceira via, uma candidatura de centro?
Existe uma parcela bastante considerável da sociedade que não se sente contemplada necessariamente por candidaturas como as de Lula e de Bolsonaro. A questão é que isso não parece suficiente para unificar esse grupo. As razões, ideologias e perspectivas são muito distintas. Existem pessoas de direita e de esquerda que não se sentem contempladas. Pelo menos no momento, entre os nomes que estão dados, não vejo nenhum com capacidade para unificar um campo tão plural como esse.
O presidente Jair Bolsonaro se elegeu prometendo combater a corrupção. Como avalia o desempenho dele na área?
É completamente pífio. O problema zero da democracia no Brasil é o presidencialismo de coalização. Foi o que fez nascer o Centrão, que na verdade é a organização política do antigo baixo clero. Os deputados eleitos em bases clientelistas, a partir de determinado momento, com a ascensão de Severino Cavalcanti, viram-se como integrantes de um bloco que não estava contemplado nas grandes lideranças partidárias. Hoje isso se corporifica no Centrão, que é o grande problema. Foi um problema para os governos anteriores e é para esse governo, que o resolve fingindo que não é problema e passando a conviver com ele da única maneira possível: com a alimentação não republicana por meio de emendas. Isso é corrupção. É corrupção gravíssima de Estado. E havia promessa pública de que não seria feita.
O senhor se refere às suspeitas de orçamento paralelo, o “tratoraço”?
Exato. O tratoraço, o orçamento secreto, são frutos da necessidade de manter essas relações não republicanas com o Centrão, que é a base de tudo. Quando vamos olhar todos esses escândalos de corrupção que estão aí agora, inclusive o caso da Covaxin e agora a notícia de que houve cobrança de propina na compra de vacinas, todos os agentes envolvidos são do Centrão. E nos diversos ministérios onde houve problemas também. É tudo muito claro, porque se trata de levantar dinheiro para comprar mandatos. Fiz uma denúncia dura sobre isso em 2014, no livro O Nobre Deputado (ed. Leya), que hoje até se tornou ingênuo devido à profissionalização que houve nos últimos anos. O tratoraço, o orçamento secreto e tudo mais são crias novas. Fico imaginando: uma presidente foi apeada do cargo por ter feito pedaladas fiscais, mas o governo que mais se beneficiou disso, o atual, pratica o orçamento secreto. Vejo nisso uma escalada dos problemas, e não uma solução.
No início, Bolsonaro tinha o ex-juiz Sergio Moro ao seu lado…
Na verdade, foi uma jogada de marketing bem superficial, porque ele convida Sergio Moro, anunciando que seria um “superministro” e, na realidade, ele ocupa um cargo extremamente esvaziado. Tudo isso mostrou desde logo que Moro apenas emprestaria o nome para o governo. Certamente não era isso que ele queria, mas foi o que Bolsonaro fez. Depois, acabou afastando o então ministro, creio que mais por temor de que ele se robustecesse para uma futura candidatura.
Falando nisso, mais uma vez, o Congresso debate mudanças na legislação eleitoral, com a tese do distritão ganhando força. O que isso significa?
É um sistema que só é adotado em quatro países do mundo, todos extremamente atrasados com a democracia. Um deles é o Afeganistão. É baseado na vitória de quem pode mais economicamente. A eleição para deputado federal, por exemplo, funciona assim: são eleitos os mais votados dentro do número de cargos abertos, como pequenas eleições para governador, porque o âmbito de campanha é o Estado. Precisa ter muito voto. Só conseguem fazer essas campanhas aqueles que têm poder econômico. Então aquela história do líder local, do líder social, perde importância. As minorias desaparecem. É um passo atrás gigantesco.
Qual seria o sistema eleitoral ideal no Brasil?
Em 2013, mais de cem organizações da sociedade civil integradas no Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral elaboraram uma proposta de reforma do sistema eleitoral. Algumas medidas foram adotadas, como a proibição das doações empresariais. Mas tem um ponto especial que merece atenção: o que chamamos de voto transparente. As eleições para deputados seriam em dois turnos, em que se vota primeiro no partido, e assim se define o número de cadeiras obtidas, e só então se escolhe os deputados. É uma espécie de dissecação do atual sistema. Nós damos o voto partidário e pessoal ao mesmo tempo e não percebemos. Seria o modelo atual, separado em duas etapas para assegurar clareza extrema para o eleitor do que ele está fazendo.
Fico imaginando: uma presidente foi apeada do cargo por ter feito pedaladas fiscais, mas o governo que mais se beneficiou disso, o atual, pratica o orçamento secreto. Vejo nisso uma escalada dos problemas, e não uma solução.
O que aconteceu com a proposta?
Em 2016, com o impeachment da ex-presidente Dilma, houve uma paralisia do Brasil, e nós paramos de coletar assinaturas. Era um momento parecido com o atual, mas nada impede que isso seja retomado. Já há 1 milhão de assinaturas coletadas.
Qual é sua opinião sobre a proposta de impressão do voto nas urnas eletrônicas?
É uma ideia absurda essa. As grandes formas de fraude estavam ancoradas na existência de papel no processo. Esses votos impressos darão margem a riscos gravíssimos. As pessoas dizem: “Ah, mas o eleitor não receberá esse voto, os votos ficarão guardados numa urna”. Ok, mas quem transporta e guarda a urna, e por quanto tempo? E, depois, se alguém conseguir trocar uma única urna, gerará uma suspeita absurda sobre todo o sistema. Talvez seja isso o que se deseja. Sabendo disso ou não, é o que estão buscando os que defendem o voto impresso. Não traz segurança alguma. Só apresenta um caminho para a fraude.
O senhor acredita que há um movimento orquestrado por trás disso?
É um movimento orquestrado que apresenta uma teoria da conspiração, porque a defesa da urna eletrônica é feita sobre bases tecnológicas e científicas extremamente bem fundamentadas. Eu mesmo lidei com a urna eletrônica em várias eleições quando era juiz. Fui juiz eleitoral, presidi várias eleições. Fui juiz auxiliar da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), acompanhava todos os espaços de auditoria. Os partidos têm amplo acesso às urnas. É tudo muito claro e nunca houve realmente ninguém que comprovasse fraude alguma.
Em 2018, o senhor concorreu a governador no Tocantins. Como foi a experiência?
Formidável. Tive oportunidade de vivenciar a política por outro lado. Nunca aprendi tanto sobre comportamento humano, sobre organização e mobilização. Mesmo tendo ficado em terceiro lugar, considero que deu muito certo, porque fui um candidato que não reproduziu a forma tradicional de campanha. Mobilizei os segmentos que eu queria mobilizar. Vencer nem sempre é conquistar um mandato. É fazer algo em que se acredita e não se dobrar para fazer coisas erradas.
Planeja tentar novamente em 2022?
Não serei candidato em 2022. Estou muito empenhado na advocacia. Além de atuar na área eleitoral, tenho me dedicado muito à advocacia social. Meu escritório foi o que moveu a primeira ação contra o Carrefour em virtude do assassinato do João Alberto (João Alberto Freitas, homem negro morto ao ser espancado por seguranças terceirizados em Porto Alegre em novembro de 2020). Eu participei ativamente do processo que levou ao acordo histórico de reconhecimento do racismo estrutural.