Garçom por profissão, vereador por votação e papeleiro por vocação. Assim é Antônio Carlos Gomes Garcia, 46 anos. Eleito pelo PTB com 1.206 votos para assumir uma das cadeiras da Câmara de Bagé, Carlinhos do Papelão se desdobra para desempenhar os três papéis manhã, tarde e noite. E nem pensa em mudar a rotina, acompanhada por ZH na quinta-feira.
Na sessão, o vereador remexe nos papéis com uma expressão séria:
- Aqui, não posso ficar rindo à toa. É coisa séria. De tarde, tu vai me ver, no meu hábitat natural, sem essas roupas, com chinelo e bermuda. Lá, sei como tudo funciona. Aqui, estou aprendendo.
O estágio está sendo levado a sério por Carlinhos do Papelão, como ele é conhecido. Desde o dia 1º, quando assumiu o cargo, não faltou. O Legislativo está em recesso até 5 de março, mas mantém sessões extraordinárias às quintas-feiras.
- Mesmo durante o recesso, dos 17 vereadores uns seis aparecem todos os dias. O Carlinhos é um - diz uma funcionária, que preferiu não se identificar.
Às 8h30min, ele sobe para o gabinete fardado: calça social preta, sapato lustrado e camisa de manga curta. Tranquilizou-se quando soube que não precisaria usar todos os dias o traje da posse, terno e gravata. Foi o primeiro terno da vida:
- Parecia um pinguim empanado. Como tem gente que usa isso todos os dias? - abisma-se.
Entrar na vida pública também foi uma surpresa. À convite do chefe no bar onde trabalha de noite, filiou-se ao PTB e foi indicado para concorrer. Fazia política à sua moda: no seu bairro, o Santa Cecília, na periferia de Bagé, organizava blocos de Carnaval e uma bateria mirim.
Seu último projeto comunitário ainda está em andamento. Catou livros entre o lixo e, com doações de entidades, está formando uma biblioteca. Já tem mais de 3 mil exemplares, mas ainda precisa achar alguém que organize as obras.
- Tenho estudo até o primeiro ano do segundo grau. Não dei bola quando os mais velhos me disseram que era importante estudar. Agora, vejo a necessidade.
Carlinhos é popular. À tarde, nas ruas da cidade, vendedoras puxam assunto:
- Qual é o próximo projeto, vereador?
Ele para o carrinho e começa a explicar. Todas as iniciativas têm a natureza como foco. Começa falando que os catadores deveriam ser mais valorizados, que é por causa deles que os bueiros não entopem. E engata seu assunto predileto: o projeto de tornar obrigatória a educação ambiental nas escolas municipais.
Próxima meta: usar o computador
Ele conta que, ao apresentar o projeto na Câmara, não conseguiu falar direito. Passou o dia irritado. Na manhã seguinte, reuniu a equipe e pediu desculpas pela má atuação. No bar, quando as coisas não vão bem, tem a mesma atitude.
- Ele começou fazendo limpeza e montagem de mesas. Hoje, é nosso gerente e garçom-chefe. Veste a camiseta da empresa e cobra comprometimento da equipe - lembra um dos donos do Point Bar, Guilherme Nocchi, 27 anos.
Quando faltou dinheiro, buscou novo mercado, como garçom
Foto: Elieser Noble, Especial
Segundo a mulher, Marisa de Vargas Garcia, de 49 anos, o que Carlinhos gosta mesmo é de pessoas. Fica difícil quantificar quantos acenos e buzinadas se direcionam a ele enquanto recolhe papelão.
- Ele trabalhava como caixa em um banco. Daí, veio com o papo de se tornar catador. Não gostei muito, mas ele sempre foi de estar na rua, conversando com todo mundo. Se achou - recorda Marisa.
Quando Carlinhos entrou na profissão, há 14 anos, a reciclagem dava lucro: o papelão rendia R$ 0,26 o quilo e a latinha até R$ 3,50. Hoje valem R$ 0,12 e R$ 1,50, respectivamente.
- Não vou largar nenhum dos dois trabalhos porque na reciclagem eu emprego famílias que separam o lixo e dependem de mim e, no bar, o dono foi o único que me estendeu a mão quando eu precisei.
Hoje, lucra R$ 200 por semana, valor que deixa com as famílias de catadores:
- Não trabalho pelo dinheiro. É pelo ambiente.
E lá vai falando sobre a natureza de novo. Questionado sobre quanto irá ganhar como parlamentar, dá de ombros:
- Acho que é R$ 3,9 mil. Mas ainda não recebi. A primeira coisa que vou fazer é uns reparos lá em casa e depois economizar para fazer um galpão do lado da reciclagem para ser um centro de treinamento esportivo da comunidade.
Às 17h30min, volta com a carrocinha cheia para casa. Descarrega, entra para o banho e cochila por 30 minutos. Veste de novo a calça e o sapato da manhã, com uma camiseta do bar. Come uma empanada com Coca-Cola e espera na esquina a carona de um colega. Mesmo com o salário de vereador, não pensa em adquirir um carro:
- Jogar dinheiro fora no tanque e perder meu exercício? Não, não.
Filiado ao PTB a convite do chefe do bar, Carlinhos transformou a popularidade nas ruas em votos
Foto: Elieser Noble, Especial
- Todo material valia dinheiro: jornais velhos, revistas, papel colorido. Hoje a gente não consegue revender isso - lamenta.
Com o preço baixo, o lucro também diminuiu e, por isso, ele buscou o segundo emprego, como garçom:
Durante a campanha, não fez passeata, mas um "carrociata". Juntou cinco carrocinhas e saiu pela cidade com as cinco bandeiras eleitorais que ganhou do dono do bar.
- Tinha um monte de carro atrás, o pessoal achou que era em apoio à campanha, mas estavam eram trancados no trânsito - diverte-se o filho mais velho, Rodrigo, de 25 anos.
No bar, ao atender uma mesa o cliente e consultor financeiro Érico Mattos, 35 anos, vai pedindo a cerveja e aconselhando:
- Vereador, tem que estudar bastante, pra não ser passado para trás.
Ele concorda e já planeja: depois de entender como funciona "essas coisas da Câmara", vai aprender a mexer em computador.
- Pra não depender dos outros. Na campanha, uma menina do comércio montou um perfil no facebook. Tenho que saber mexer nisso. Viu como é importante? Elege até vereador.