
O mês de abril foi o menos violento contra mulheres no Rio Grande do Sul dos últimos oito anos. Ao menos segundo os dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP). Em Caxias do Sul, os registros de lesões corporais e ameaças no primeiro mês de isolamento completo devido à pandemia de coronavírus tiveram queda de 10%. O levantamento estadual aponta que 1.259 sofreram lesões em casos de violência doméstica durante o mês de abril. A média de 42 mulheres agredidas por dia é alta, mas é a menor registrada no Estado desde 2012. Como a crise do coronavírus não aparenta ter gerado uma conscientização de igualdade de gênero, autoridades e psicólogos percebem outros efeitos do distanciamento que podem ter reduzido os registros oficiais. O principal deles é a dificuldade de notificação em razão do distanciamento social.
— Vemos, em muitos casos, que a vítima de violência doméstica precisa de um apoio, alguém que a incentive a registrar a ocorrência. A partir do distanciamento social, em que as pessoas não estão indo trabalhar nem encontrando amigas e familiares, esta mulher continua sendo vítima de violência, mas não tem este espaço ou apoio para buscar ajuda — analisa o promotor Luiz Carlos Prá, que atua na Vara da Violência Doméstica em Caxias do Sul.
Esta redução nos pedidos de ajuda também foi percebida no Centro de Referência da Mulher. A Casa Viva Raquel, que recebe mulheres que se sentem ameaçadas, chegou a abrigar apenas uma vítima no mês passado. Normalmente, a ocupação gira em torno de oito mulheres e seus filhos. Sobre os atendimentos, a psicóloga Elenice Cazanatto relata que a procura em geral diminuiu, mas que a demanda por atendimento psicológico cresceu.
— A maioria que tem nos procurado são aquelas que já conheciam o caminho: eram atendidas pelo serviço, mas se mostram bastante angustiadas. Procuram pela questão emocional, do isolamento, do afastamento de amigos, algumas perderam o trabalho... Talvez pela insegurança diante do vírus as vítimas só estão buscando ajuda no último momento, quando não aguentam mais. Antes, com xingamentos e humilhações, já buscavam o serviço. Podem estar sofrendo mais — pondera.

Essa possibilidade preocupa as autoridades policiais e motivou o Estado a lançar uma campanha para incentivar as denúncias de violência contra a mulher (veja mais abaixo). O vice-governador e secretário da Segurança Pública, delegado Ranolfo Vieira Júnior, ressalta a importância de comunicar à polícia situações de abuso ou agressão, o que permite a adoção de medidas preventivas contra o agravamento do quadro.
— São muito raros os casos em que o feminicídio é resultado da primeira agressão. Em geral, as mortes por motivação de gênero são o ponto final de um longo ciclo de violência que, quanto antes for rompido, tem mais chances de preservar as vítimas — explica.
Por isso, neste momento de maior recolhimento domiciliar em razão da covid-19, o vice-governador destaca a importância que amigos, familiares, vizinhos e até mesmo desconhecidos estendam a mão e ajudem mulheres que podem estar sendo vítimas de violência:
— O ato de fazer a denúncia salva vidas. Não hesitem. Nossas forças de segurança estão prontas para ajudar.
Fatores que podem explicar a redução dos registros de violência doméstica durante a pandemia:
:: Menos frustrações
Responsável pelo projeto Hora (Homens, orientação, reflexão e atendimento), que já acompanhou mil homens agressores em Caxias do Sul desde 2014, a psicóloga Maria Elaene Tubino aponta que o principal motivo de agressões é falta de maturidade afetiva para resistir a frustração.
— Ouvir um "não" é o motivo que tira o homem do sério. O foco está sempre na insatisfação, na negativa. Não transar, não ter feito a comida como queria, não ter se arrumado, não ter o pedido atendido. Ele não pode ser desagradado que se torna agressivo. Só que, agora, com mais tempo em casa, este desejo dele pode ser em outro horário? Não entendi isso. A frustração é menor, diminui aquela briga — aponta.
Esta frustração também pode ser externa, como problemas no trabalho ou no futebol, que são descarregadas na mulher, na companheira.
— Todo mundo briga com quem está mais perto, com que tem intimidade, uma relação mais segura, só que a maioria das pessoas não bate. O perfil do agressor é este, da covardia. É um homem quem não se garante, que não tem independência emocional.
:: Falta do "ombro amigo"
O distanciamento social afastou as mulheres daquelas pessoas que as incentivam a procurar uma delegacia, como amigas ou colegas de trabalho. Historicamente, a denúncia não acontece na primeira agressão ou humilhação. É um ciclo que precisa ser quebrado para entender que o companheiro não é mais aquele pelo qual se apaixonou.
— As vítimas têm dúvidas se o que sofrem é uma situação de violência ou estão interpretando de uma forma inadequada. O apoio destas pessoas as fortalece. Fazer uma denúncia e pedir medida protetiva também são momentos difíceis para algumas, que se sentem vulneráveis, ainda mais nessa época: como será a retirada do agressor de casa? E se ela tiver que sair, vai para onde? Nesta crise, o desemprego é um risco ainda maior — acredita a psicóloga Elenice Cazanatto.
:: Menos bebida alcoólica
Muitas ocorrências começam com o homem chegando em casa embriagado, segundo a polícia. Com bares fechados e a circulação mais restrita, este tipo de agressor acabou mais controlado.
— Se a pessoa bebe em casa, normalmente há um limite. Quando bebe com amigos, numa farra, o consumo é maior, é exagerado. Muitos casos de violência doméstica acontecem na volta de um bar ou de uma festa. (Para este agressor bêbado), o estopim pode ser uma palavra ou não encontrar algo em casa — aponta o promotor Prá.
— É um fator preocupante a fragilidade que o homem fica quando bebe. Ele projeta situações no outro — concorda Elenice.
:: Controladores tem menos "explosões" em casa
Um dos perfis de agressor que mais preocupa é o dos dominadores, que querem saber cada passo da mulher. Este tipo de agressor é conhecido como sistemático: ele violenta a mulher, seja física ou psicologicamente, quando esta sai para trabalhar ou quando quer visitar a família, por exemplo. Só que, ao ficar em casa com a mulher, ele teve este desejo saciado.
— Ele agride a mulher quando ela sai para trabalhar porque ele não quer que ela trabalhe. Eles querem a mulher em casa, só para ele, como se fosse um objeto. Agora no isolamento, mal ou bem, estes homens têm atendido os seus anseios. Se ela não sai de casa, ele não tem por que bater nela. Não existe o ciúme, já que ela não está vendo ninguém. É um agressor sistemático, que preocupa bastante, mas que está em paz. É o pior tipo de homem — reitera o promotor Prá.

Campanha tem foco nas redes sociais
Rompa o silêncio. Você não está sozinha. Se precisar, é só chamar. Esse é o recado da campanha lançada pelo governo estadual para incentivar as denúncias de violência contra a mulher. A ação tem como foco o compartilhamento em redes sociais, com dois vídeos propositalmente sem som e seis cards. As peças da campanha trazem canais de denúncia, que atendem 24 horas por dia, de forma gratuita e totalmente anônima. Participam mulheres que representam as instituições da segurança pública com atuação no combate a crimes violentos.