Na Região Metropolitana, a facção do assaltante Dilonei Melara criada nos anos 1990 em substituição à Falange Gaúcha expandia as relações fora e dentro das cadeias, mas enfrentava dissidentes. Inicialmente, o bando mirava roubos a bancos e carros-fortes e separava bandidos do resto da sociedade. Para ele, não haveria como manter relações pacíficas com a administração do sistema prisional e órgãos de segurança. Para contrapor o poder de Melara, o Estado negociou com um detento para que ele colocasse ordem na cadeia e liderasse os companheiros de galeria para seguir as regras. Esse acordo permitiu o nascimento de outra facção.
Melara, por sua vez, foi executado em 2005, logo após ter escapado do sistema prisional. O posto seria ocupado por Paulo Márcio Duarte da Silva, o Maradona, criminoso com outros planos para os parceiros de crime. Inspirada no movimento do PPC em São Paulo, a união de apenados evoluía e passava a ter interesses econômicos e expansionistas mais objetivos.
— O crack ajudou a impulsionar o poder financeiro das facções — reforça Paulo Roberto Rosa da Silva, delegado regional da Polícia Civil.
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O jornalista Renato Dornelles vê o intercâmbio de presos da Serra com a Capital e a saturação do tráfico de Porto Alegre como fatores do surgimento das facções em Caxias do Sul. A presença de apenados daqui na PEC ou no Central ocorreram durante interdições do Presídio Regional (antiga Pics).
— Foi nesta década agora que começou a interiorização. Aqui (em Porto Alegre), a polícia começou a apertar, tem muita disputas, as zonas estão loteadas e não há mais espaço para crescer. Mas é um novo formato diferente daquela facção original lá do Melara. O outro aspecto é quando ocorreu a transferência de presos entre os presídios, veio o convite para alguém que passou por aqui organizar uma célula na Serra — aponta Dornelles.
Conforme investigações da polícia, uma ramificação da facção que nasceu no Presídio Central foi forjada em Caxias por Daniel Gomes Paim, com passagens por tráfico e homicídio. Ao lado dele, estava Michel De Souza Da Silva, o Michelzinho, com trajetória por roubos a banco e passagens pelos presídios da Região Metropolitana. Paim e Michelzinho teriam sido "batizados" pela facção da Capital e ganharam autorização para organizar os pontos na Serra. Os dois cumprem pena no Apanhador.
— A principal contribuição do Estado para o surgimento das facções foi o descontrole das prisões. A partir do momento em que o Estado começa a superlotar os presídios e as penitenciárias e, consequentemente, a perder o controle dessas casas, passa a permitir que os criminosos se organizem e montem seus escritórios do crime em celas e galerias — enfatiza Dornelles.
A atuação do grupo em Caxias foi notada a partir de 2015, durante uma guerra com dezenas de mortos na tomada por biqueiras. Paim inseriu no esquema Jeferson da Silva, o Jé do Reolon, com quem tem parentesco e que cumpria pena por latrocínio. Outros foram se associando e, em pouco tempo, já coagiam apenados e criminosos livres para se unir a eles. Quem negasse, era morto. Ameaçados, os rivais buscaram apoio de outra facção da Região Metropolitana e iniciava ali uma guerra sangrenta a partir de 2015. Pela primeira vez, Caxias era palco de uma sequência de chacinas e duplos homicídios com casas e corpos queimados.
Não é só entre eles
A velha e equivocada crença de que tudo está bem enquanto "eles estiverem se matando" começou a cair por terra em outubro de 2016. Um dos planos da facção era matar policiais militares envolvidos numa ação que deixou quatro integrantes do bando mortos na Vila Ipiranga — os criminosos haviam executado um casal no bairro Planalto. A vingança não aconteceu, mas as autoridades perceberam os riscos de manter os bandidos em Caxias e optaram pelo pedido de transferência para um presídio federal, desfecho ainda sob análise.
De certa forma, quando a informação de isolamento numa prisão de segurança máxima se tornou pública entre o grupo, a quantidade de homicídios reduziu, avalia a polícia. O efeito a longo prazo da medida, se ocorrer, é uma incógnita. Com os chefes isolados, supõe-se que a facção entrará em crise e ficará ainda mais fragilizada _ a organização já perdeu dinheiro com apreensões e processos. Por outro lado, abrirá caminho para substitutos e rivais.
Mas o que está em jogo não são os trâmites do Judiciário ou o que a polícia fará para combater essas organizações. O horizonte é mais amplo quando se analisa a identificação das novas gerações com os bandidos. A doutrina criminosa dos presídios extrapolou os muros e hoje é uma chaga nos bairros, fenômeno pouco compreendido ou estudado, mas decodificado em letras de funk. Para a criminóloga Angie Finkler, pesa muito a questão da visibilidade social. O grande criminoso não está mais escondido, é uma referência para muita gente, contribuiu com uma comunidade com o dinheiro da violência; logo, quem vai ser contra ele?
— Quando entendo a criminalidade, saberia como combater. Como não estamos prevenindo, imagina como vai ser daqui a 10, 15 anos — questiona Angie.
Manoelito Savaris vê um abismo quase intransponível.
— O celular e a internet modificaram o sistema social e criminal. Mas teve outra coisa também: quando foi criado o auxílio-reclusão, se pensou no encarcerado e na sua família. E a vítima? qual é o auxílio-vítima? Tu cria na sociedade um sentimento de nós contra eles. O bandido também é nós, mas o modelo fez uma divisão tal que o bandido não faz parte da sociedade. Se ele não se sente parte, se vê no direito de atacar o inimigo. Mudar esse modelo não passa pela polícia, isso passa pela escola, passa por planos de organização social e isso não existe — lamenta o historiador e oficial da reserva da BM Manoelito Savaris.
O experiente delegado aposentado Farnei Goulart é ainda mais cético:
— Teve um fato que me fez desacreditar que não havia mais jeito. Um dia uma criança foi raptada de casa, abusada e assassinada e o corpo deixado num aterro perto de uma escola. Lembro das crianças em volta rindo. Quando crianças têm essa reação, é complicado, algo se perdeu. Também me enchi porque a polícia só existia para eliminar uma bronca, mas não para resolver o problema. Isso era frustrante.
A história da violência, portanto, continuará sendo escrita.