
Reduzir os beneficiados do Bolsa Família e aumentar a quantidade de pessoas no mercado de trabalho. Desde fim do ano passado, essa tem sido a meta do prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Segabinazzi Siqueira (PSDB). Em meados de novembro, a prefeitura começou a intensificar a revisão dos cadastros e bloquear benefícios com indícios de irregularidades. A partir disso, cidades como Caxias do Sul e Farroupilha aderiram à ação.
Até o início de março, 377 benefícios foram bloqueados em Bento Gonçalves. Em Caxias do Sul a ação que começou em novembro do ano passado resultou em 170 bloqueios e em Farroupilha foram 107 cadastros bloqueados. Contudo, a perspectiva é de ampliar os índices de corte dos benefícios, ao menos em Bento Gonçalves.
É isso que Siqueira promete para esse e os próximos anos do seu segundo mandato. Segundo o prefeito de Bento, o projeto para dar mais ênfase à revisão dos cadastros do Bolsa Família surgiu em 2023, após o caso dos trabalhadores resgatados em situação análoga à escravidão na cidade.
— A gente começou a se dar conta que a cidade tem um problema de mão de obra. Quando observamos os dados do Bolsa Família, achamos muito alto em relação às oportunidades de emprego ofertadas. Então fomos em busca desse grupo, ligamos um por um para ofertar emprego. Mas o resultado foi muito baixo. Havia muita informalidade e desinteresse em entrar no mercado de trabalho formal. Foi então, que mudamos a estratégia para a revisão dos cadastros — explica.
A ação visa confirmar os dados autodeclarados pelos beneficiários quando fazem o cadastro no programa do governo federal. Para isso, a equipe de Bento Gonçalves tem focado nas visitas domiciliares. Nesses encontros, os servidores confirmam se a pessoa reside no endereço indicado, quem vive com ela, se há alguma renda no núcleo familiar que possa comprometer o benefício. Em caso de irregularidades, solicitam bloqueio do benefício.
— Claro que tem as exceções. Eu acho que assim, as pessoas que realmente precisam do Bolsa Família devem ganhar o benefício. Uma mulher, com 4 ou 5 filhos, que não tem marido, que realmente precisa, deve receber o Bolsa Família. Não estamos cortando o benefício de todo mundo, mas de quem têm condições de trabalhar — argumenta.
Em 17 de março, o governo federal finalizou uma série de mudanças no portal do Cadastro Único, porta de entrada para diversos benefícios sociais, entre eles o Bolsa Família. Na prática, ao inserir o CPF da pessoa no cadastro, o próprio sistema relaciona um conjunto de dados pesquisados na base de dados do governo, facilitando a verificação de informações.
Apesar dessa nova ferramenta contra possíveis fraudes no programa, o prefeito garantiu que irá manter a ação em Bento Gonçalves. Crítico do Bolsa Família e das medidas do governo federal para transferência de renda, Siqueira garante um envolvimento ainda maior dos servidores da cidade na revisão dos cadastros.
— Eu não confio no governo federal e deixo isso muito claro. Acredito que a União não visa a diminuição dos beneficiários do Bolsa Família, até porque a gente só vê aumento nos últimos anos. O que eu acredito é que precisamos fazer mais municípios da região entrarem nessa fiscalização — defende.
Reflexos na empregabilidade
Embora o impulso de Bento Gonçalves para revisar os cadastros tenha se disseminado em outros municípios, a cidade é a única que alia essa ação com a inserção no mercado de trabalho.
Para o prefeito, nem todas as pessoas que recebem o Bolsa Família são vulneráveis. Siqueira acredita que entre os 4,8 mil atendidos pelo programa, há uma parcela apta a trabalhar que utiliza o benefício de forma fraudulenta. E é justamente essas pessoas que ele busca localizar na revisão dos cadastros e reinserir no mercado de trabalho:
— Não posso ter a visão que toda pessoa que ganha o Bolsa Família é vulnerável. Entendo que se essa pessoa pode trabalhar e se tem inconsistência no cadastro dela, o benefício deve ser cortado. E é isso que estamos fazendo. Só que ao mesmo tempo, estamos oferecendo a chance dessa pessoa voltar trabalhar.
O encaminhamento para vagas disponíveis é feito através do Balcão de Empregos da prefeitura. A escolha da plataforma é justificada pelo prefeito como uma forma de tornar o processo menos burocrático e tirar a dependência do município do governo do Estado, se referindo à Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS) e ao Sistema Nacional de Emprego (Sine).
Desde novembro do ano passado até final de março, cerca de 90 pessoas já foram direcionadas pela prefeitura para vagas em aberto. Contudo, ainda havia cerca de mil vagas abertas só no Balcão de Empregos. A informalidade é apontada pelo prefeito como o principal desafio para conseguir ampliar os ingressos no mercado de trabalho.
— A gente consegue colocar o percentual de cerca de 15% dessas pessoas, que estão na informalidade e poderiam ser empregadas. Outro ponto chave que estamos trabalhando é a dependência dessas pessoas de algum Estado. Precisamos cortar isso, seja uma dependência a nível estadual ou federal.
Menos indústrias, índices mais altos
Uma das maiores cidades da Serra Gaúcha, Vacaria se sobressai dos demais municípios analisados pelo alto percentual da população que recebe o Bolsa Família. Em 2014 cerca de 13,9% dos moradores eram beneficiados pelo programa do governo federal.
Nos seis anos seguintes, o índice oscilou em queda, até atingir 8,7% em 2019, menor percentual no intervalo dos 10 anos, contudo superior às porcentagens registradas em Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Flores da Cunha e Farroupilha - que representa menos de 10% da população nas cidades citadas.
O aumento no percentual de população que recebe o Bolsa Família começou em 2020 e seguiu em alta até 2024, quando atingiu 19,5%, maior índice de beneficiários registrado na última década.
Nesse cenário, a secretária de Desenvolvimento Social de Vacaria, Marli Madruga Kovaleski, aponta dois fatores que contribuem para os altos índices da cidade: a falta de indústrias no município e a renda per capita mais baixa em comparação com as demais cidades da região.
— Nossa economia é constituída pelo setor primário (produção de alimentos) e terciário (comércio e prestação de serviços). Dessa forma, a renda per capita e o próprio PIB da cidade é mais baixo do que em outras cidades próximas. Como consequência, temos uma parcela maior de moradores em situação de vulnerabilidade — pontua.
Qual o perfil dos beneficiários do Bolsa Família na região
Mulheres convivendo com, ao menos, uma criança ou adolescente são a maioria dos beneficiados pelo programa Bolsa Família em cinco cidades da Serra gaúcha. É o que mostram os dados do Observatório do Cadastro Único, que também contam com informações do programa social.
Em Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Farroupilha, Flores da Cunha e Vacaria, elas representam 60% dos atendidos pelo programa e são a maioria massiva entre os responsáveis familiares (membro do grupo escolhido para receber o benefício). Isso porque o programa prioriza fazer a transferência da renda para mulheres.
Quando se fala em maioria feminina, também estão inclusas meninas e jovens, já que em todas as cidades citadas, o montante de crianças e adolescentes representa a maior parcela dos beneficiados.
Beneficiários na faixa dos sete a 15 anos são o maior grupo de menores de idade em todas as cidades. Da mesma forma, a maioria dos adultos em idade profissionalmente ativa se concentra na faixa dos 25 a 34 anos. Também em todas as cidades, as famílias beneficiadas pelo Bolsa Família majoritariamente são compostas por duas a três pessoas, tendo ao menos uma criança ou adolescente.

É o caso de Michele da Silva Ribeiro, 32 anos, que vive com os cinco filhos, no bairro Cidade Nova, em Caxias do Sul. Na casa de chão batido, com paredes de madeira e de poucos móveis, é o Bolsa Família que garante as refeições dela e das crianças, que têm entre dois e 13 anos.
Os R$ 1,4 mil pagos pelo governo federal são usados para comprar os alimentos e gás. Michele, que tem problemas de saúde, é beneficiária do programa há cerca de seis anos. Nesse período já ficou alguns intervalos sem receber o Bolsa Família, mas retornou ao programa devido às dificuldades.
— Eu soube do programa em 2019 quando a minha antiga casa pegou fogo e eu perdi tudo. Pedi ajuda no CRAS e foi lá que me explicaram como funcionava. Hoje o Bolsa Família é o que ajuda a gente aqui em casa. Como tenho problema nos rins e estou esperando para fazer uma cirurgia, ainda não consigo trabalhar — conta.
Além da renda, autonomia e cidadania
Idealizado em 2003 como uma ferramenta para retirar as pessoas da extrema pobreza, o programa Bolsa Família tem influenciado outros aspectos sociais nos 22 anos de operação.
Conforme Aline Hellmann, doutora em economia, mestre em sociologia, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e pesquisadora de programas sociais, o Bolsa Família contribui para a economia municipal, influencia na educação e saúde da população em situação de vulnerabilidade.
— O benefício em dinheiro ajuda essas famílias a terem um mínimo de renda para se manterem e, claro, gira a economia local. Mas, para além disso, impacta nos níveis de educação e saúde. Isso porque há regras do programa, sobretudo para crianças, que preconiza que elas estejam matriculadas e frequentando a escola, além de serem acompanhadas pelas equipes de saúde da cidade — explica.
Os efeitos ao longo prazo dessas ações complementares ao Bolsa Família, segundo Aline, são proporcionais às crianças beneficiadas, com maior acesso à educação, ao mesmo tempo que estão assistidos pela saúde municipal.
De acordo com a pesquisadora, que estuda programas sociais desde 2006, o Bolsa Família contribuiu para o aumento de escolaridade das crianças e jovens, além de ter diminuído a insegurança alimentar, melhorado a saúde e reduzindo as desigualdades entre homens e mulheres.
Conforme a doutora em Serviço Social e professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ana Maria Paim Camardelo, que também pesquisa programas sociais, a ideia de que o beneficiados pelo Bolsa Família se acomodam não retrata a realidade na totalidade. Isso porque ela identificou o anseio desse grupo em recuperar a autonomia de suas vidas.
— Todas as pesquisas que fiz ao longos anos mostram a vontade, o desejo que essas pessoas têm de ter autonomia, de poder decidir o que elas vão fazer com a vida delas, ter qualidade de vida para sua família e não depender dos programas — argumenta.
Para a pesquisadora, a baixa escolaridade, aliada às questões raciais e classe social, acabam produzindo desigualdades e preconceitos que dificultam o acesso desse grupo ao mercado de trabalho.
— Uma mulher negra, moradora de periferia tem acesso totalmente diferente à educação e às oportunidades que uma mulher branca, que mora no Centro da cidade, que tem um capital social e acesso à educação de qualidade — pontua.
Informalidade como principal fonte de renda
Os dados informados pelas prefeituras, disponibilizados no Observatório do Cadastro Único, indicam que em Bento Gonçalves e Caxias do Sul uma parcela expressiva dos beneficiários do Bolsa Família está trabalhando.
Em Caxias, das 17.194 pessoas com idade apta a trabalhar, ou seja dos 18 a mais de 65 anos, 9.163 trabalham. Desse grupo, cerca de 5 mil atuam por conta própria (exercem atividade sem vínculo empregatício e sem patrão). Ainda, entre as famílias beneficiadas pelo programa na cidade, 60% contam com pelo menos uma pessoa trabalhando.
Em Bento Gonçalves, entre as 1.855 pessoas com idade entre 18 a 65 anos ou mais, 1.003 trabalham. Desse grupo, a maioria — 510 — também atua por conta própria. Contudo, entre as famílias de beneficiados, apenas 46% possuem ao menos uma pessoa que trabalha.
Para a professora Ana Maria Paim Camardelo, a informalidade reflete o medo desse grupo de não conseguir se manter no mercado de trabalho formal. Nesse sentido, ela entende que o Bolsa Família representa uma segurança de renda mínima, seja qual for a situação.
— A pessoa não tem férias, não tem décimo terceiro, não tem descanso semanal... Se ela ficar doente está totalmente desprotegida. Então por que as pessoas abririam mão disso? Porque elas não têm esta segurança. Quando elas conseguem empregos, são mais aqueles que têm baixa remuneração, os mais precarizados — argumenta.
No entendimento da professora, além do mercado de trabalho não ser favorável à inserção desse grupo, pelas baixas qualificações e o preconceito envolto, também apresenta dificuldades da permanência de pessoas em vulnerabilidade.
— O mercado de trabalho brasileiro é caracterizado por índices de instabilidade, de baixa remuneração. Quando essas pessoas vão procurar empregos, elas enfrentam uma série de desafios. O primeiro deles é a questão da educação. Muitas pessoas não tiveram uma educação de qualidade, muitas não tiveram acesso ao ensino básico.
Ainda, Ana Maria argumenta que os atendidos pelo Bolsa Família são vistos pela sociedade, frequentemente, como dependentes ou menos capazes. Esse efeito psicológico leva ao descrédito e à desvalorização pessoal desse grupo.
Condições necessárias para a mudança
Apesar da ação realizada pelos municípios, de encaminhamento para vagas de emprego, a professora e pesquisadora Ana Maria acredita que outras esferas precisam se envolver para transformar a realidade dos atendidos pelo Bolsa Família. A alternativa que a professora crê ser viável é criar um programa de transição para os beneficiados do programa, garantindo a segurança financeira deles e ao mesmo tempo, incentivando o ingresso em empregos formais.
— É preciso pensar em uma política de transição entre o benefício e a autonomia. Algo que fosse gradual, que fosse reduzindo o benefício até que a pessoa se estabilizasse no emprego. Porque existe esse medo de perder o Bolsa Família, não conseguir se manter no trabalho e depois ficar sem renda.
Ainda, a pesquisadora alerta para os programas de qualificação, que auxiliam no ingresso ao mercado de trabalho. Para Ana Maria, os cursos precisam estar alinhados com as necessidades do mercado. Outro aspecto observado é viabilidade de participação.
— Precisamos que a educação infantil tenha condições de receber as crianças, filhas de beneficiários do Bolsa Família, tanto para que possam participar das qualificações, quanto para poderem trabalhar de forma plena.