A partir de um projeto iniciado em 2012, Caxias do Sul plantou uma semente no Estado e em outras regiões do Brasil. Naquele ano, o município começava a implantar a Justiça Restaurativa (JR), em parceria com o Poder Judiciário, com foco na resolução e prevenção de conflitos nos casos jurídicos, em escolas e na comunidade. Nomeada de Caxias da Paz - Programa Municipal de Pacificação Restaurativa, a ação, depois, virou lei municipal em 2014. A legislação tornou-se base para a atuação em Caxias e também referência para que outras cidades seguissem os passos desse projeto. No ano passado, inclusive, o programa foi homenageado pela Câmara de Vereadores por conta dos 10 anos.
Na época, o programa foi implantado pelo desembargador aposentado Leoberto Brancher, referência nacional no assunto. Até 2009, ele atuava em Porto Alegre e tinha trabalhado com a Justiça Restaurativa na Capital. Ao voltar para Caxias, como juiz da Infância e Juventude, o magistrado recebeu o pedido do então secretário de Segurança Pública e Proteção Social de Caxias do Sul, Roberto Soares Louzada, para que iniciasse trabalho semelhante no município. De forma resumida, o programa recebe partes contrárias que estão dispostas a resolver a diferença na base do diálogo, com a ajuda de um mediador ou conciliador, chamado de facilitador. O impacto e a forma como ocorre, como pontua Brancher, vai muito além desta definição:
— A resolução na abordagem restaurativa é muito benéfica porque ela não deixa aqueles resíduos de hostilidade, rancor ou mágoa. Ela consegue aliviar muito a tensão de um conflito. Mas o mais importante é o clima social que é favorecido, a convivência. Do ponto de vista da vítima, quando se trata de uma ofensa maior, com a vítima, há um alívio daquele trauma. Ele é um processo, nesse sentido, de certa forma curativo de superação de trauma.
O Caxias da Paz
Pela lei municipal, o programa é estruturado com um Núcleo de Justiça Restaurativa e três centrais (Central de Pacificação Restaurativa da Infância e da Juventude, Central Judicial de Pacificação Restaurativa e Central de Pacificação Restaurativa Comunitária). Atualmente, o programa é sediado no Fórum e ocorre por meio de parceria da prefeitura e Poder Judiciário com cinco pessoas, sendo servidores da Justiça e do município. O Caxias da Paz está inserido no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc).
Como explicam a facilitadora judicial Franciele Lenzi Ferreira e a secretária-executiva do Cejusc, Kelen Caelen Toss de Lima, a metodologia utilizada no programa é dos Círculos de Construção de Paz. São neles que as partes envolvidas dialogam, podendo ter também a participação dos advogados e de representantes da rede municipal, como de serviços de convivência social e fortalecimento de vínculos, conforme o caso.
Como contam, os círculos são realizados em ambiente controlado e confortável, com dinâmica que permite essa abordagem. Tudo, lógico, é feito com responsabilidade e bastante preparação, com a assinatura de termos para participação e regras expostas.
Franciele detalha que primeiro as partes são chamadas de forma individual para entender a situação, explicar a metodologia e saber se elas estão dispostas. Um ponto fundamental é que a participação deve ser voluntária. O ambiente é montado para que haja o diálogo aberto. O círculo é feito ao redor de uma peça de centro, geralmente um tapete com objetos que trazem conforto, como uma flor. Junto, café e biscoitos são colocados.
— Combinamos as regras, como basicamente falar na sua vez, respeitar o direito da palavra, não falar de quem não está aqui, cuidar a forma como vai falar, usar comunicação não violenta. E aí, colocando isso, começamos a ver o lado humano do outro. Trazer isso de volta, essa humanidade compartilhada que se fala tanto no círculo — descreve a facilitadora judicial.
Os casos podem ser os mais diversos, como acidente de trânsito, discordância sobre herança, brigas de vizinhos, desentendimento entre adolescentes e situações de vulnerabilidade social, por exemplo. Podem ser situações judicializadas ou podem surgir da própria rede municipal, como dos serviços de assistência social. Ou seja, podem ser recomendações de juízes, promotores, advogados e dos serviços municipais.
— Basicamente, o ciclo pode ser aplicado a qualquer situação, desde que a gente tenha os princípios básicos respeitados — conta Franciele.
Tem situações em que o círculo serve para resolução de problemas de relacionamentos. Dependendo do caso, também pode avançar em um acordo da questão legal. Mas, como destaca Franciele, a decisão sempre ocorre se houver o consentimento de todas as partes. No círculo não há uma figura como um juiz que dará uma sentença, por exemplo:
— Se conseguirmos chegar a um entendimento, ele é com base no consentimento. De, por exemplo, eu estou bem esclarecida sobre o que eu estou fazendo. Então, todo mundo vai assinar e nós fazemos um termo de acordo.
A mesma metodologia pode até ser usada para o autocuidado de um grupo ou setor. Após a conclusão do círculo, um pós círculo é marcado para monitoramento da situação.
O programa também atua na formação de novos facilitadores dentro da rede municipal. São formações com servidores como da Guarda Municipal, da Secretaria Municipal de Educação (Smed), na Fundação de Assistência Social (FAS), entre outras. A partir delas, os servidores não só aprendem a metodologia, como podem ganhar um novo olhar para situações que podem surgir na rotina. No Estado, a escola da Ajuris também realiza a formação para facilitadores.
Fortalecendo laços
Um espaço de troca, cuidado e transformação. A resolução dos casos é apenas um dos impactos da prática. Um exemplo disso, mencionado por Franciele e Kelen, são atendimentos feitos em outros espaços, como no Centro de Atendimento Socioeducativo (Case) e no Centro de Atendimento Socioeducativo em Semiliberdade (Casemi).
O projeto se iniciou um pouco antes da pandemia, depois de um círculo de construção de paz realizado nos espaços. Por dois anos, as reuniões foram feitas para o fortalecimento de vínculos (com medidas de restrição, lógico). Hoje, de forma voluntária, os jovens que estão em medida de internação podem participar do projeto no Fórum.
A ação chegou, inclusive, a ganhar outras regiões do Estado. Um dos resultados vistos foi uma troca positiva entre os jovens, como relata Franciele:
— Nós expandimos para o Estado inteiro, para as unidades, como Uruguaiana, Porto Alegre, São Leopoldo e foi bem legal. Por exemplo, o guri que está lá na Case de Uruguaiana. O guri de lá está falando de trabalhar com agricultura. O nosso está falando de trabalhar na indústria. Então, eles fizeram essa troca. Eles nem se conhecem pessoalmente, mas seguiram nessa troca. Então, tem esse reforço do positivo.
Um outro lado dos círculos também é oportunizar o fortalecimento da rede de atendimento. Brancher lembra que um dos grandes ganhos da metodologia é justamente "produzir sinergia" entre as pessoas e as instituições.
— Esse aprendizado de conexão, de reconexão, de estabelecimento de canais, de fazer fluir a energia da vida, seja nas relações interpessoais, seja nas relações institucionais, ela é o grande ganho que a Justiça Restaurativa traz, que é produzir sinergia — destaca o desembargador aposentado.
Por isso, Brancher reforça que a rede também precisa funcionar para que exista a continuidade do trabalho iniciado nos círculos. O desembargador recorda casos, por exemplo, de reestruturação familiar. Os círculos podem trazer a reconciliação, mas o atendimento precisa continuar, seja na saúde, assistência social ou educação.
Programa chegou a ter 16 servidores e sedes diferentes
Para atuar no programa, os servidores e parceiros em Caxias receberam especialização, uma preparação que começou ainda em 2010. Além de treinamentos com a equipe de Porto Alegre, duas professores do Canadá e a jurista norte-americana Kay Pranis, referência na Justiça Restaurativa, também vieram ao município.
O programa passou a funcionar em 2012. Inicialmente, junto da prefeitura e Judiciário, estavam a Universidade de Caxias do Sul (UCS) e a Fundação Caxias - esta última, inclusive, tinha convênio com o município para ser a executora do projeto.
Antigamente, as centraism (Central de Pacificação Restaurativa da Infância e da Juventude, Central Judicial de Pacificação Restaurativa e Central de Pacificação Restaurativa Comunitária) possuíam sedes próprias. A comunitária, por exemplo, era no Cânion. Além disso, eram 16 profissionais atuando no programa. Atualmente, tudo está sediado no Fórum de Caxias, funcionando por meio do Cejusc.
O desembargador recorda que o início foi de bastante destaque. Logo, o programa tinha formado facilitadores em diferentes áreas, como na Guarda Municipal.
— Vieram guardas de vários estados. Recebíamos visitas, assim, toda hora. De governo, do tribunal, prefeituras para se inspirar ali. Era referência. A Guarda Municipal teve um curso que ela formou nove municípios, com eles mesmos dando o curso — relembra Brancher.
Depois de um começo de destaque, o projeto passou por dificuldades. Como lembra o desembargador, muito mudou na gestão de Daniel Guerra, entre 2017 e 2019. Servidores que eram disponibilizados ao Caxias da Paz foram realocados para as funções de origem no serviço municipal e as centrais foram fechadas. Ao mesmo tempo, com o fim do convênio entre município e Fundação Caxias, uma nova contratação não foi feita na época. Após o impeachment de Guerra, a decisão foi retornar ao formato antigo.
Desde então, as três centrais seguem sediadas no Fórum, com a equipe de cinco servidores, além de voluntários. Atendimentos que envolvem as áreas das três centrais seguem ocorrendo.
Semente no Estado e no país
Como relembra Franciele, o município teve até situações que impressionaram Kay Pranis, como colocar agressor e vítima frente a frente. Essa experiência da Justiça Restaurativa em Caxias, assim, foi uma escola para a multiplicação da metodologia pelo Estado e país. A pesquisadora autônoma Ana Paula Pereira Flores faz o mapeamento de cidades brasileiras que instituíram leis na área da Justiça Restaurativa. Segundo o levantamento de Ana Paula, são 100 leis em 96 cidades (quatro cidades possuem duas leis).
Conforme a pesquisadora, que é advogada e servidora da Fundação de Assistência Social (Fas), a primeira lei do país é de Barueri (SP), em 2010. Mas, foi a de Caxias, assinada em 2014, que parece ter desencadeado o movimento em outras cidades. Ana Paula relembra do importante movimento feito por Leoberto Brancher, tanto na cidade, quanto no Judiciário, quando ele ajudou a criar também o núcleo da JR na Ajuris.
Entre os estados, Rio Grande do Sul, com 35 projetos, é o que mais têm legislações. Depois, vem Mato Grosso, com 29, e São Paulo, com 13. Dentre as metodologias, a pesquisadora demonstra que a mais utilizada é dos círculos de construção de paz, que aparecem em 56 projetos (acompanhada de outras iniciativas ou não). Já a área de maior vinculação deles é a educação, o que é visto em 54 cidades.
Escolas aderem à metodologia
Como mostra o estudo de Ana Paula Flores, a área com mais vinculações é a educação. Um caso de implantação no Estado é por meio do Projeto Escola Segura e em Paz, da Secretaria Estadual de Educação. O programa é coordenado pelo Núcleo de Cuidado e Bem Estar Escolar da pasta e tem o objetivo de levar a Justiça Restaurativa e a cultura de paz para a rede pública estadual, a partir da formação de facilitadores e a realização dos círculos de construção de paz.
Conforme o relatório do programa que se iniciou em 2023, no ano passado foram 385 facilitadores formados na rede de ensino, 198 círculos realizados, com a participação de 6,9 mil pessoas, entre estudantes e professores, e seis instrutores atuando. Pelo menos 277 escolas contam com um desses especialistas. O objetivo da pasta é até 2027 formar 25 instrutores e ter 4.676 facilitadores.
— O Conselho Nacional de Justiça tem uma resolução recomendando a todas as escolas do Brasil que adotem essas técnicas de prevenção, de conflitos, de fortalecimento de vínculos, de fortalecimento de laços de respeito mútuo. E isso dentro de uma missão da escola que a Unesco definiu os pilares da educação já há alguns anos. E se tem que a escola não é uma instituição unicamente encarregada de ensinar conteúdos, ela também tem a missão de educar, de ensinar a ser, de ensinar a conviver. Então, dentro dessa linha de ensinar a ser e ensinar a conviver, se apresenta a Justiça Restaurativa — conta o professor coordenador do Programa de Justiça Restaurativa na Seduc, Marcelo Malizia Cabral, que também atua como juiz em Pelotas.
Como destaca Cabral, a pasta acredita que a educação para a convivência é uma missão da escola, para que conflitos sejam prevenidos e também para que os jovens aprendam a lidar com eles de forma positiva. O especialista lembra que a metodologia surgiu em 1970, na Nova Zelândia.
Uma das escolas que utiliza a metodologia e notou impactos positivos com a Justiça Restaurativa é a escola estadual de ensino médio São Pio X, de Farroupilha. Em 2024, o colégio teve a maior nota do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do RS.
A diretora Ilda Gengnagel implantou os círculos de construção de paz em 2022, quando voltou a ser diretora da escola - Ilda teve o primeiro contato com a Justiça Restaurativa em 2018. A educadora percebeu que a metodologia podia ajudar os estudantes no contexto da pandemia. Naquele ano, os alunos estavam retornando ao presencial. Os professores viam jovens lidando com a ansiedade e dificuldades na convivência, criando um cenário desafiador para a educação.
Foi assim que nas terças, em uma sala reservada na escola, uma turma sempre era acolhida para os círculos. O ambiente era preparado, a turma seguia um cronograma separado para recreio e lanche, e passava a manhã focada na atividade. O resultado foi além do esperado, e logo os professores e a direção notaram o impacto positivo.
— Eles se identificavam também com os colegas. Primeiro eles tinham tempo de se autoconhecer. A nossa cultura não é falar dos seus sentimentos. Culturalmente não é para falar. Quando é falado, normalmente ele é julgado. Então, ali com os valores do círculo colocado no grupo já se tinha que aquela fala era sem julgamento. Então, eles se autoconheciam. Se identificavam com os colegas — observa a diretora.
Ilda nota que foram melhoradas situações, como as de bullying. A prática foi utilizada em 2022 e 2023, sendo vista como uma ação importante para alcançar a nota do Ideb - logicamente, dentro de um contexto escolar com uma construção realizada ao longo do tempo.
A educadora lembra, contudo, que a escola que ela coordena tem exatamente os mesmos desafios que qualquer outro colégio do Estado.
— Eu acredito que foi uma construção. O Círculo da Paz foi uma ferramenta muito importante. Saindo de uma pandemia, foi o primeiro ano que eles voltaram 100% presencial. Foi importantíssimo para que conseguíssemos atingir esse resultado. Além do trabalho ao longo da escola, ao longo de todos esses anos de trabalho, foi isso que eu trouxe. O principal passa pelo gestor acreditar na ferramenta. E depois disso, proporcionar a escola — conta Ilda.
A assessora do núcleo, Marivane Carvalho, que também tem experiência com a Justiça Restaurativa em Caxias, vê a importância de escolas seguirem o exemplo da São Pio X, para que a ferramenta possa estar cada vez inserida na rede:
— Eu preciso querer, porque eu tenho também que entender que a Justiça Restaurativa não é salvadora, não é a varinha mágica, mas sim ela é muito transformadora. Mas a pessoa precisa acreditar, assim como a Ilda acreditou e que ela vai trazer um trabalho fantástico. Então, a pessoa precisa abrir essas portas.
Círculos para lidar com danos em escola
Como explica a coordenadora do Núcleo de Cuidado e Bem Estar Escolar, Salete Maria Kirst, um dos objetivos da secretaria é institucionalizar a metodologia, para que ela seja ampliada de forma equitativa para a rede. Outro ponto também é utilizar da ferramenta para que seja um trabalho de acolhimento para os professores, e não só para os estudantes.
— As escolas com ótimos gestores, com visão acolhedora e de espaço, abrem esta oportunidade. E na nossa mandala está garantir a educação e aprendizagem para todos. Então, esse é o nosso trabalho como núcleo (ampliar a metodologia). Está instituído, mas estamos no início. E é o nosso objetivo — conta Salete.
A implantação pode ajudar também em situações como em Caraá, no Litoral Norte. Os círculos de construção de paz foram utilizados para um outro objetivo. A diretora Juliana Souza de Oliveira lembra que a cidade passou por uma enchente em junho de 2023, causando graves estragos na escola estadual Marçal Ramos. Foi nessa situação que o grupo da Seduc procurou a comunidade escolar também para acolhimento.
— Limpar uma sala, todo mundo vê o resultado, mas ninguém vê como fica o emocional — reflete a diretora.
Os primeiros círculos foram organizados pelo Núcleo de Bem-Estar da pasta. Depois, a escola passou a promover para os estudantes e também para comunidade, como forma de lidar com a situação.
— No primeiro momento, nós não tínhamos a dimensão, não tínhamos a noção do que seria, mas já no início percebemos assim que foi muito importante para nós porque desde então nós conseguimos assim assimilar um pouco mais aquilo tudo que estava acontecendo. Foi muito difícil e nós estávamos muito naquela questão da prática de tirar lodo, de recuperar salas, e o emocional estava ficando muito de lado. Então, quando veio a oportunidade dessa acolhida da parte do Estado em nos trazer o círculo de paz foi muito, muito benéfico — relata a diretora.
Hoje, a metodologia segue na escola para a resolução de problemas.