No dia 12 de dezembro de 1984, o Pioneiro noticiava o sucesso da cirurgia que transplantou no caxiense Nélson Albuquerque, com 23 anos na época, um dos rins retirados do seu irmão, Paulo.
O procedimento, até então inédito no interior do Estado, envolveu uma dezena de médicos de diferentes especialidades e inaugurou em Caxias do Sul uma possibilidade que anualmente salva a vida de milhares de brasileiros. O rim é o órgão que contabiliza a maioria dos transplantes realizados no país. No ano passado, segundo dados do Ministério da Saúde, foram 4.514 cirurgias realizadas ou 66,72% do total de procedimentos.
Por conta do ineditismo da época e apreensão com os rumos que a cirurgia pudesse ter, a cirurgia foi feita sem alardes e o fato noticiado dois dias depois, quando paciente e doador se recuperavam no quarto do hospital.
Chefe do corpo clínico da época, o cardiologista Francisco Michielin lembra que o transplante, realizado no então Hospital Fátima, foi feito em um domingo “no dia e nas horas em que o ambiente hospitalar é dos mais sossegados”, naquele que considera ser um dos marcos mais icônicos da medicina caxiense.
— Durante a semana, quase ninguém, no próprio hospital, ficou sabendo. Precisava se evitar toda a especulação e mesmo o surgimento de opiniões contraditórias e até negativistas. O primeiro transplante renal foi concretizado com pleno sucesso. Lembro que a notícia voou imediatamente e as emissoras de rádio, que transmitiam uma partida de futebol, interromperam as jornadas esportivas para darem a notícia — diz
Ainda segundo Michielin, foi a experiência de já ter no hospital um centro de hemodiálise, criado no início dos anos 1980, que permitiu à equipe inovar de tal forma. O esforço foi uma colaboração entre as especialidades que o Fátima, hoje Virvi Ramos, tinha na época:
— Fazia cerca de uma década que o Hospital Fátima concentrava o maior número de internações cardiológicas da cidade. Logo a seguir foi montada a estrutura destinada à hemodiálise, a primeira de Caxias do Sul. Essas duas importantes clínicas juntaram os esforços para desenvolver atividades mais ousadas para a época. Isso há 40 anos era uma proeza.
Ao lado do urologista Noberto Tonietto, chefe da equipe na época, o médico Hélio Ramos lembra das cerca de quatro horas de duração da cirurgia inédita e da preocupação com o doador, que teve o órgão retirado em uma segunda sala:
— Foi bonito e repercutiu muito. Trouxemos ao interior algo que era feito só na Capital, uma coisa nova com dois procedimentos feitos ao mesmo tempo. Mas tínhamos assistido procedimentos como aquele e repassamos o passo a passo diversas vezes antes de iniciar. Hoje em dia os transplantes são feitos em centros de referência com equipes de plantão, para que o órgão seja transplantado há tempo.
Na edição de 1985 da revista da Associação Médica de Caxias do Sul (Amecs), o nefrologista Ilo Goldemberg comemorou o sucesso da empreitada e a evolução que ela representou para a medicina da região:
“Se tu fizeres um trabalho consciente e assumires todos os riscos, tu acabas trabalhando com tranquilidade, nós partimos deste princípio: Nélson poderia rejeitar. Tem que ser feito? Tem que ser feito. Não se trata de mostrar aos outros que nós sabemos fazer. Trata-se de criar um novo conceito sobre a capacidade de Caxias no sentido proporcional de sua evolução como município”
Há 40 anos com apenas um dos rins
Foi a demora na cicatrização dos pontos que atrasou a alta do doador, autorizada na véspera de Natal, duas semanas e meia após a cirurgia. Os irmãos Albuquerque puderam então celebrar a data em casa como anunciava a manchete da época.
Nélson faleceu 13 anos após o transplante, vítima de um câncer na garganta. Pelo tempo que viveu transplantado, de acordo com a família, teve uma vida normal e chegou a ter a medicação reduzida.
O doador, Paulo Albuquerque, na época com 21 anos, foi escolhido por ter o mesmo tipo sanguíneo do familiar e, antes de entrar na sala de cirurgia, passou um ano realizando transfusões sanguíneas para Nélson.
Metalúrgico e pai de duas mulheres, de 41 e 33 anos, Paulo está aposentado, mas segue trabalhando. Só lembra que vive há tanto tempo com apenas um dos rins quando olha para a cicatriz:
— Vivo uma vida normalíssima, para mim isso é assunto que só lembro quando vejo a cicatriz. Na época nos sentimos muito seguros, o dr. Goldenberg adotou nossa família, era um paizão e nos tranquilizava. Houve alguns comentários de pessoas dizendo que fomos cobaias, mas sabíamos em que mão estávamos e não tínhamos dúvidas de que era viável. O organismo dele aceitou de primeira e durante os 13 anos em que viveu com meu rim não teve a menor possibilidade de rejeitá-lo.
Atualmente, transplantes de rins em Caxias do Sul são feitos no Hospital Pompéia. De acordo com levantamento feito a pedido do Pioneiro, foram realizados 343 procedimentos desse tipo desde o primeiro, realizado em 31 de janeiro de 1992. Em 2024, oito transplantes foram realizados.
Participaram do transplante na época:
Os urologistas Hélio Ramos e Norberto Tonietto e os cirurgiões vasculares Geraldo Gallícchio e Edson Baldisserotto. Faziam parte da equipe médica também os anestesistas Valter Porto e Ivan Fernandes e os nefrologistas Ilo Goldemberg, Luís Fochesatto, Sérgio Guerra, Moacir Rossi e Méri Brusa.