Agitados, geralmente peludos e dóceis, bichos de estimação trazem alegria e companhia para milhões de brasileiros. Para alunos da Apae de Gramado, duas border collie, a Aspen e a Nairóbi, estão fazendo a diferença semana após semana. Elas fazem parte da polícia penitenciária, então geralmente estão focadas em outro tipo de serviço. Mas, nas quartas, elas e os servidores da 7ª Delegacia Regional da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) fazem parte do projeto de cinoterapia na entidade da Região das Hortênsias, iniciado no fim de setembro. Completando quase um mês, a terapia com cachorros mostra resultados surpreendentes para crianças, adolescentes e adultos com transtorno de espectro autista (TEA) atendidos pela instituição.
— Muitas vezes o trabalho no sistema prisional fica invisível e somente dentro dos muros. Somos serviço público e buscamos a constante evolução dentro do nosso setor, como o fato de estarmos atuando diretamente nesse projeto, com o auxílio de servidores empenhados — diz o titular da 7ª Delegacia Penitenciária Regional, Fernando Demutti.
A iniciativa, inclusive, se torna “uma escola” para todos os envolvidos. Por ser uma novidade para as duas entidades, a delegacia regional e a Apae buscaram se aprofundar no assunto para desenvolver o programa. Os técnicos das entidades se capacitaram e seguem estudando para atuar no projeto. Todas as sessões são documentadas para servir de base para outras entidades que quiserem adotar a cinoterapia, considerada uma subdivisão da Terapia Assistida por Animais (TAA). A delegacia da Serra busca sugerir que o projeto seja levado para outras regiões com canis, como Santa Maria.
— As famílias, como a gente, estão muito felizes e surpresas com o resultado em tão pouco tempo. Escolhemos os pacientes tendo em vista os estudos que já trazem benefícios. É um projeto em que estamos aprendendo a cada semana. Exige muito estudo, preparação e planejamento terapêutico — comenta a coordenadora da Apae, Juliane Zalamena.
O projeto nasceu do diálogo entre a Susepe e a Apae de Gramado. Ao ver uma notícia sobre uma visita de cães da Brigada Militar (BM) à entidade, o delegado Fernando Demutti imaginou que um sonho para o futuro da Apae, de terapias com cães, poderia se tornar realidade. Logo, as entidades iniciaram encontros em agosto.
Ao mesmo tempo que a estrutura da terapia foi desenvolvida, o canil da 7ª Delegacia Regional, inaugurado também no fim de setembro, estava em construção, em Canela. Hoje, finalizado, além de Aspen e Nairóbi, o espaço é lar de outros seis cães, que fazem parte do serviço penitenciário. Para Demutti, o projeto, que tem apoio voluntário da Susepe, é uma forma de retribuir para a comunidade o apoio que a força de segurança recebe.
— É um projeto gratificante para os servidores da Apae e da Susepe. Inclusive, aqueles que estão mais distantes da gente, mas que têm familiares com autismo, por exemplo, também se sentem acolhidos. É uma maneira de retribuirmos um pouco para a sociedade. Não só o projeto do canil, que foi com mão de obra prisional, mas tudo que a gente entende como uma forma de amenizar esse prejuízo que as pessoas causaram para a sociedade, e produzir coisas boas. Trabalhamos com esse foco — destaca Demutti.
"O sorriso toma conta"
Dividida em turmas de crianças, adolescentes e jovens adultos, a cinoterapia na Apae faz o atendimento a 19 alunos autistas. Hoje, a entidade atende a cerca de 160 pessoas, sendo 60 delas com TEA. A Apae também oferece ecoterapia (técnica com cavalos) e hidroterapia, feita na piscina da instituição.
— Não é simplesmente vir e colocar um cão, um técnico para saúde e um cinotécnico para brincar e fazer qualquer coisa. Tem uma finalidade terapêutica para um público específico, o autista. Sabemos que tem um ganho. Estamos vendo coisas que a gente não via em anos deles (pacientes) aqui dentro — relata Juliane sobre a cinoterapia e contando que a ecoterapia também tem resultados positivos.
O cuidado com os pacientes e a busca por resultados significativos com a terapia são reconhecidas pelas famílias. Maria Brás dos Santos, 26 anos, mãe da Flávia, cinco, diz que o dia a dia da filha está "mais dinâmico" após o início da cinoterapia.
— Abraça e brinca quando vê os cães, o sorriso toma conta. Está sendo benéfico o convívio entre eles. Ela se mostra feliz quando está perto — diz Maria.
Cada paciente tem um planejamento com a terapia, mas as entidades formularam o programa em etapas. A primeira é a da interação, para adaptação dos estudantes com os cães e os servidores da Susepe, em um ambiente conhecido por eles, na Apae. Nas sessões, os alunos são estimulados a interagir com os cães, brincar e realizar tarefas dentro de um ambiente que simula uma casa. No fim, há um momento de relaxamento, em que Nairóbi ou Aspen deitam ao lado do paciente.
Todos pensavam que a adaptação pudesse ser um pouco mais demorada. Mas, com menos de um mês, veio a surpresa. Os pacientes da Apae criaram um laço com as cachorras e os técnicos. No dia que a reportagem esteve na entidade, até uma aluna foi vista guiando Aspen com confiança, ao lado do servidor da Susepe.
— Estamos vendo o ganho que estão tendo, o ganho terapêutico, a evolução e o desenvolvimento de habilidades que quase não existiam e agora conseguimos visualizar. Como na questão de socialização, questão de expressão, que muitos deles não têm a linguagem verbal. É realmente surpreendente — avalia a coordenadora da entidade.
É o que relata a mãe de Davi, quatro, Gisele Silva, 36. Ela conta que o garoto está melhorando na comunicação e na socialização:
— Ele sai da terapia feliz e isso faz toda a diferença para o desenvolvimento dele.
Do medo ao carinho
Antes da terapia, o paciente Fernando Scariot, 32, tinha medo de cães. Como conta a mãe Maria Inês da Silva Scariot, 58, quando Nando era criança, ela tentou dar um pet a ele por orientação de uma psicóloga. A reação dele foi de medo e, desde então, ele evitava o contato com animais. A cinoterapia na Apae mudou completamente este sentimento.
— Eles (os técnicos e os servidores) têm uma maneira carinhosa. Mas, nossa, o Nando me surpreendeu. Primeiro, ele ficou sério, ele fica assim quando não conhece algo, mas depois, recebi até foto dele deitado com a cachorrinha. Isso é incrível — compartilha Maria Inês.
A mãe também notou Nando mais calmo e centrado após as terapias - o aluno também está na turma de ecoterapia.
— Estamos muito contentes — celebra Maria Inês.
O mesmo aprendizado e alegria é sentido também por quem ajuda na cinoterapia. É o caso da servidora da Susepe, Jalcira Figueiredo, que atua em Canela, trabalhando com o canil da polícia penitenciária. Nas quartas, ela e os colegas Ezequiel Pires da Silva e Cristian Roider se dedicam ao projeto com a Apae.
— É uma vivência diferente do que estamos acostumados. É muito satisfatório ver o retorno deles, porque um simples olhar para o cão já é um ganho imenso. Tu vê as crianças ou os adultos que não interagem com nada e no primeiro dia com os cães já tem o contato. Bah, é muito bom — descreve Jalcira.
No final do primeiro ciclo, a 7ª Delegacia Regional e a Apae planejam levar os pacientes e as famílias conhecerem o canil de Canela. Os alunos são curiosos para descobrir onde os cães moram. Além disso, é um mais um desafio para eles, ao conhecer um novo ambiente.
— É algo (o desafio) que vamos superar junto. O sistema prisional não é composto apenas de grades e muros, somos agentes de transformação social visando contribuir com a comunidade — finaliza o delegado Demutti.