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À medida que o coronavírus chegou ao Brasil e se disseminou pelos municípios, estado a estado, a população viu uma enxurrada de decretos serem publicados com orientações e medidas restritivas às mais diversas atividades e também de atitudes, comportamento e distanciamento social.
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Um a um, seguindo as orientações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), os estados onde os casos surgiram suspenderam eventos para evitar a aglomeração de pessoas, limitaram funcionamento de comércio, indústria, educação e determinaram adoção de medidas de higiene e utilização de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) nos casos de serviços essenciais que seguiriam operando, entre outras ações.
Na mesma linha, prefeitos editaram decretos, alguns ainda mais restritivos, inclusive, determinando toque de recolher para reduzir a circulação de pessoas nas cidades à noite.
Porém, na última semana, após declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro, que defendeu o isolamento vertical, uma nova onda de decretos começou a ser editada. Na oportunidade, Bolsonaro sugeriu deixar em isolamento apenas os grupos mais suscetíveis à covid-19, como idosos e pessoas com doenças como hipertensão e diabetes. E pediu que as atividades fossem retomadas por municípios e estados, destacando que medidas exageradas estavam sendo tomadas.
Desta vez, os decretos são de abrandamento das medidas. Assim, criou-se um ambiente de questionamento. Afinal, a quem compete decidir sobre os planos de contingenciamento da covid-19? União, governos estaduais ou municipais?
Segundo o advogado especialista em Direito Constitucional, Maurício Salomoni Gravina, a competência entre os entes da federação, determinada na Constituição Federal, é cumulativa ou concorrente. O artigo 23, inciso 2º, diz que cuidar da saúde e assistência pública é competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
– Cabe a esses entes zelarem pelos serviços públicos de saúde, sendo que a necessária descentralização reforça que os estados e municípios detêm autonomia para medidas de restrição, como no caso do isolamento social. Isso tem a ver com questões de administração da máquina pública, é uma pandemia que afeta as pessoas, mas atinge os sistemas de saúde da União, estados e municípios. Todos, portanto, têm o poder-dever de intervir com as políticas que lhes pareçam mais adequadas, como é o caso do fechamento de escolas – explicou o especialista.
Gravina aponta que o artigo 198, inciso 1º, é bastante explícito sobre a descentralização de serviços públicos de saúde, que integram uma rede regionalizada e hierarquizada, com direção única em cada esfera. O jurista lembra que o assunto foi objeto de julgamento recente no Supremo Tribunal Federal (STF), da relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, com decisão favorável à descentralização, no sentido de que estados e municípios detêm competência para determinar o que são serviços essenciais e limitar a circulação de pessoas.
Para o advogado Maurício Zockun, professor de Direito Administrativo na PUC/SP, o fenômeno do coronavírus colocou em evidência um debate que sempre existiu no direito brasileiro, mas que agora assume contornos concretos. É que a legislação que disciplina o combate ou a mitigação dos efeitos da covid-19 é a Lei Federal 13.979, que pretendeu fixar as múltiplas medidas que podem ser adotadas nos âmbitos federal, estadual e municipal. Segundo Zockun, essa lei foi editada com fundamento em dispositivos constitucionais que preveem que compete aos entes atuarem da defesa da saúde de forma concreta. Ou seja, com ações como a vacinação, por exemplo.
Mas, ao lado dessa competência para agir concretamente existe também um condomínio entre União, estados, municípios e Distrito Federal no que se refere à prerrogativa para legislar a respeito da saúde. Nesse ponto, à União compete fixar normas gerais, mas estados e municípios têm o que se chama de competência legislativa suplementar.
Na prática, conforme os critérios estabelecidos pela Lei, após a decretação de propagação local do vírus no âmbito nacional, os municípios que não têm disponíveis 80% dos leitos para o atendimento de casos de covid-19 podem decretar situação de emergência e, com isso, adotar as medidas restritivas. Ainda assim,o sistema é hierarquizado:
– Se o Ministério da Saúde entender que determinada medida, como isolamento ou quarentena, não é adequada no plano estadual ou municipal, em rigor, o município não pode adotar essa medida. A liberdade dos municípios existe, mas ela é condicionada, nesse ponto, à aprovação do Ministério da Saúde – explicou o jurista.
Zockun diz que os municípios, por meio das secretarias de saúde, devem consultar o Ministério da Saúde para adotar medidas mais drásticas, como quarentena e internação compulsória. Nas demais, como requisição de bens e serviços, não é necessária essa consulta.
Governo do Estado deve reunir todos os decretos em um só
Na tarde de ontem, em entrevista ao Jornal do Almoço da RBS TV, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, disse que o governo trabalha para reunir os decretos estaduais publicados sobre o tema até o momento em um único documento, que sirva de diretriz aos municípios gaúchos. O governo estuda organizar o novo documento por níveis de restrições, pela Região Metropolitana, por aglomerações urbanas no interior do Estado, por porte de município e por casos registrados.
Mas, explicou que o decreto estadual "estabelece as regras mínimas que devem ser observadas no Estado todo". Leite ponderou que há de se considerar as diferentes realidades dos 497 municípios do Estado. Segundo ele, em algumas cidades, principalmente, da Região Metropolitana, que concentram número maior de casos de contágio do coronavírus, as medidas rigorosas se justificam. Já em outras, menores e que não têm registros, não existe a necessidade das mesmas ações.
– Não entendemos que seja pertinente, adequado, que o decreto estadual estabeleça as regras mais rigorosas para todo o território, se há situações peculiares em relação aos municípios – declarou.
O governador ressaltou que os prefeitos devem respeitar as regras estaduais e podem ir além em regras mais restritivas, referindo que este "poder" lhes foi dado pela Constituição:
É um ente federativo (o município). Ele (prefeito) tem poder e legitimidade para tomar decisões. E a responsabilidade quem buscou foram os próprios prefeitos e quem deu foram os munícipes que os elegeram. Eles (prefeitos) têm essa responsabilidade.
Eduardo Leite ainda defendeu que, em função do impacto na economia dos municípios, "não cabe fazer um tratamento tão severo, tão dramático, e com impacto tão forte de efeitos colaterais se nem doença há" nas pequenas cidades do Estado e que cabe a cada prefeito avaliar a situação local.
Algumas determinações do decreto estadual:
:: Determina que não pode haver aglomerações com mais de 30 pessoas.
:: Eventos estão suspensos, assim como as aulas.
:: Postos de combustíveis e lojas de conveniência podem funcionar até as 19h, para evitar reunião de público à noite nesses locais, exceto em rodovias e pontos que atendam caminhoneiros.
:: Restrições para comércio, indústria e construção civil, com alteração de escala de serviço.