Carros, celulares, computadores, chuveiros, garrafas PET e de alumínio e eletrodomésticos. O que todos esses produtos têm em comum além de fazerem parte da rotina de milhões de pessoas ao redor do mundo diariamente? Eles dependem de um setor específico da indústria para serem fabricados: a ferramentaria, que é uma das especialidades de Caxias do Sul, um dos principais polos deste segmento no Brasil.
A ferramentaria é um setor da indústria metalúrgica que permite a criação e reprodução de moldes para a confecção dos mais variados produtos vistos no mercado, tanto no plástico como no alumínio. Ela está ligada às empresas que atuam com corte, dobra e repuxo, e para isso são utilizadas máquinas como fresadoras, tornos e retíficas, além das que são operadas por meio de controle numérico computadorizado (CNC).
Dados da Associação Brasileira da Indústria de Ferramentais (Abinfer) apontam que 75% das empresas ligadas a esse segmento da indústria no Rio Grande do Sul estão instaladas na região de Caxias. Além disso, conforme a entidade, o maior município da Serra é um dos três principais polos de ferramentaria do país, junto com Joinville, em Santa Catarina, e o Estado de São Paulo.
— Caxias do Sul é vista como um dos principais centros de fornecimento de ferramentais para a indústria nacional, com elevada competência técnica e disponibilidade para atendimento às demandas do mercado — explica o presidente da Abinfer, Christian Dihlmann.
O presidente do Sindicato das Indústrias de Material Plástico do Nordeste Gaúcho (Simplás), Orlando Antônio Marin, descreve a ferramentaria como um dos setores mais importantes da indústria local, e é literal na explicação sobre o que é o setor:
— Ferramentaria sempre foi a maneira de se dar forma a uma ideia, a um produto. Mas você precisa desenvolver ferramentais para que essa ideia se torne um bem-estar, uma coisa cobiçada pelas pessoas, e isso vale para tudo — explica Marin.
Um levantamento do Sindicato das Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Caxias do Sul e Região (Simecs) aponta que são 289 empresas ligadas à ferramentaria na Serra, que empregam cerca de 13 mil pessoas.
A grande maioria das empresas de ferramentaria na cidade tem como principal consumidor o setor automotivo, e devem se beneficiar com os recentes anúncios das montadoras no Brasil. Para os próximo anos, mais de R$ 117 bilhões em investimentos devem ser injetados na economia brasileira, que são resultado do programa do governo federal chamado de "Nova Indústria Brasil".
— Nós já somos um polo reconhecido, eu tenho certeza que conseguimos acomodar uma gama bastante grande desse investimento para a transformação das nossas empresas — destaca o presidente do Simecs, Ubiratã Rezler, sobre como esses investimentos podem impactar na economia local.
Mesmo que o segmento automotivo seja o maior comprador dos ferramentais produzidos em Caxias e Região, outros setores também despontam, como o de linha branca — que engloba máquinas de lavar, refrigeradores, micro-ondas, entre outros — elétrico e eletrônico, mineração, saúde e, até mesmo, defesa, com armas não letais, por exemplo.
— O (setor) automotivo é onde Caxias é mais reconhecida, veio muito projeto onde uma ferramentaria grande pegou e acabou permeando para outras, e assim acabou se criando esse conhecimento todo. Mas hoje temos uma gama muito grande de projetos que envolvem várias áreas — detalha Rezler.
Reconhecimento à indústria caxiense
Em abril, um grupo de quatro profissionais da usina NLMK Verona, da Itália, estiveram em Caxias do Sul para uma palestra na Diferro Aços Especiais. Alberto Medeghini, gerente técnico de suporte ao cliente, Daniele Bindoni, responsável comercial de aços ferramenta da usina para a Ásia e Américas, Klaudiusz Raszka, gerente de inteligência e desenvolvimento de negócios, e Luca Fontò, metalurgista e diretor de vendas de aços especiais, apghiniresentaram para cerca de 300 pessoas de diversos Estados do Brasil algumas das principais novidades do setor de ferramentaria para os próximos anos.
A palestra reforçou a importância do mercado de aço no Brasil, sobretudo no setor automotivo. A NLMK tem negócios com a Diferro há pelo menos 10 anos. Eles falaram sobre a expansão da tecnologia verde no setor, visando à sustentabilidade e processos com menor impacto ambiental.
— Basicamente, o que estamos observando é uma transição dos motores combustíveis para os elétricos, e essa tendência também tem se observado no Brasil. No setor automotivo essa transição tem sido mais acentuada, estamos observando que muitas empresas e muitos fabricantes estão usando mais alumínio do que outras — destacou Luca Fontò, ressaltando que isso pode impactar nas ferramentarias.
Klaudiusz Raszka explicou que houve uma queda na produção de carros entre os anos de 2019 e 2020, em virtude da pandemia, mas que o mercado automotivo vem se recuperando gradativamente. E ele avaliou os investimentos previstos para o setor automotivo no Brasil, que podem trazer benefícios a Caxias do Sul:
— Isso com certeza vai ter um impacto, vai fazer com que esse segmento continue crescendo no Brasil — disse.
O presidente da Diferro, Adelar Santarem, também falou sobre a importância da ferramentaria para a empresa dele, uma referência na distribuição de aços, com matriz em Caxias e filiais em Cachoeirinha e Araquari (SC). Segundo ele, o setor da ferramentaria é um dos principais consumidores de aço. Para Santarem, a Serra vai se beneficiar com os grandes investimentos das montadoras no Brasil.
— Não existe automóvel sem ferramentaria, se olhar qualquer botão, qualquer chave, o que tu quiseres, em algum lugar tu vais encontrar aço e ferramenta, e é para isso que estamos preparados para atender — descreve Santarem.
Tradição há mais de quatro décadas
Ferramentaria e a empresa caxiense Belga Matrizes são quase sinônimos. Fundada em 1979, a companhia se tornou uma referência na produção de moldes para injeção de termoplásticos e termofixos. Com um parque fabril de mais de 4 mil metros quadrados de área construída localizado às margens da BR-116, consegue produzir moldes de até 50 toneladas (50 mil quilos) para os mais diversos segmentos da economia.
Desde 1998, o empresário e engenheiro mecânico José Alceu Lorandi é o único proprietário da Belga, após ter comprado a parte de um outro sócio. Atualmente como presidente da companhia caxiense, tem ao seu lado os filhos Aline e Rafael Lorandi como sócios.
— O foco inicial foram os moldes e dispositivos, trabalhamos com a New Holland, de Curitiba, e depois fomos trabalhando, até que hoje o nosso foco realmente são moldes para injeção tanto no plástico como no alumínio. Mas o foco principal são moldes de maior porte — resume o presidente.
O setor automotivo é o principal consumidor da Belga. Atualmente, 95% do faturamento da empresa está ligado a esse ramo, com as principais montadoras que têm fábricas no país sendo clientes. Lorandi acredita que os investimentos já anunciados podem impactar de forma positiva, mesmo assim, pondera sobre os concorrentes internacionais:
— Para nós, todas as ferramentarias do Brasil, é muito importante (os investimentos). Mas não podemos esquecer que temos concorrência muito forte da China principalmente, que é um mercado grande. Com certeza vai trazer benefícios.
Atualmente, o mercado externo não está entre os principais compradores da Belga, mas isso é algo que o presidente da empresa esperar resolver logo. Os Estados Unidos e a Argentina são dois grandes parceiros comerciais, e ele acredita que também possa entrar no México. No mercado asiático, mantém boas relações com o Japão. As exportações correspondem de 10% a 12% do faturamento, e o objetivo é chegar em 25%.
— O consumo de moldes, principalmente no México e nos Estados Unidos, é muito alto — explica sobre a escolha de abrir novas oportunidades de mercado.
Movimentações no mercado já são percebidas
Os anúncios dos investimentos das montadoras são vistos com bons olhos pelo empresário Paulo Scopel, diretor comercial da Inova Matrizes. No ramo da ferramentaria desde a década de 1980, fundou a empresa há 21 anos. Atualmente, cerca de 80% do faturamento está ligado diretamente ao setor automotivo, tendo como clientes as próprias montadoras, mas também os sistemistas — empresas que fornecem os componentes às montadoras.
Dentro do setor automotivo, a Inova é especializada em diversos moldes, mas com foco principal em powertrain, que é a parte de motorização dos veículos, e os interiores, com acabamentos e consoles, além da parte de iluminação. Esses moldes são complexos de se produzir, e podem demorar meses para ficarem prontos.
Além do setor automotivo, o agro e a linha branca (eletrodomésticos) são outros fundamentais para a empresa. Atualmente, a Inova conta com um parque fabril de mais de 2,7 mil metros quadrados no bairro São Ciro. Todo o trabalho de engenharia é feito com programas 3D (em três dimensões), o que pode entregar uma maior agilidade na execução das tarefas. No setor de ferramentaria, estão empregadas 52 pessoas.
— Desde o ano passado começou a dar uma melhorada legal no setor automotivo. Esses anúncios que começaram a acontecer neste ano, toda semana um anúncio novo de uma montadora, e falando com o pessoal de outras ferramentarias, a gente vê que o mercado está começando a encher, e a tendência é ter muito trabalho nos próximos anos — comemora Scopel.
Mas a Inova não atua somente na ferramentaria. Há dois anos, também passou a atuar com a injeção de plástico. Assim, além de entregar a matriz, pode já fazer o produto final para o seu cliente. Nesse setor são 14 funcionários.
— A necessidade maior é porque precisamos da injetora para fazer o try out (teste do produto a ser feito no ferramental) para o plástico, quando faz um molde tem que fazer a prova dele, ver se funciona e tirar algumas amostras. Compramos uma (máquina), aí veio um serviço, os clientes queriam que injetássemos, e já entregamos a peça pronta para alguns clientes — explica.
Na visão de Scopel, os maiores desafios da ferramentaria em Caxias para os próximos anos são a implementação de máquinas mais tecnológicas, além de qualificar a mão de obra.
— Uma das principais preocupações é o mercado asiático, porque existe uma importação de moldes muito maior do que a quantidade de moldes que são fabricados no Brasil, mas temos que trabalhar o mercado externo, e para isso temos que estar sempre nos modernizando — conclui o empresário.
Foco na linha branca
A linha branca é o foco principal da Cicma Matrizes, localizada no bairro De Lazzer, em Caxias do Sul. Fundada em 2001, a empresa é fruto da experiência de Pedro Barp Machado, atual diretor, e que tem experiência de mais de 40 anos no setor de ferramentaria. Por lá são fabricados componentes para refrigeradores, freezers, lavadoras de louças e de roupas, secadoras, fogões, entre outros.
No entanto, nem sempre foi assim. Nos primeiros anos, a Cicma trabalhava como um braço para as ferramentarias de maior porte, como um espécie de empresa terceirizada. E naquela época trabalhava com diversos nichos de mercado. Hoje, o setor da linha branca representa aproximadamente 80% do faturamento, sendo que a maioria é de fora do Rio Grande do Sul, com o Estado de São Paulo e a região Nordeste despontando.
— Hoje está muito evoluído na parte de tecnologia e tem que ir acompanhando esse processo, que é bem diferente da época (quando abriu a empresa). Hoje estou mais aprendendo do que ensinando — conta Pedro Barp sobre o crescimento da empresa.
Atualmente, Pedro conta com a presença do filho Nelson Machado para auxiliar na parte administrativa da companhia. Ele, que tem um MBA em Gestão, entrou na empresa com o incentivo do pai.
— É bastante desafiador e também tem a questão de prazos, porque não é igual ao automotivo, que tem um planejamento maior de datas. Tem que ser para daqui a 120 dias, é bem diferente — contextualiza Nelson Machado, sobre o dia a dia da empresa.
Além da linha branca, o setor elétrico (com interruptores, quadro de distribuição e quadro medidor), o automotivo (componentes para carros, caminhões e entre outros) são os outros focos da Cicma.
Especialidade em moldes complexos
Fundada em 1995, a Plasmolde chegou ao mercado pela trajetória do ferramenteiro Luiz Carlos Barp Machado, que atua nesta área desde 1971. E o negócio ganhou ares familiares. O filho dele, Rodrigo Barbosa Machado, formado em Designer de Produto, é o gerente de projetos, e a esposa, Mônica Barbosa Machado, cuida da parte financeira do empreendimento. Além deles, são mais três funcionários em um pavilhão do bairro Mariland.
Conforme o gerente de projetos, o foco da empresa sempre foi em peças mais técnicas e delicadas, que têm uma certa complexidade a mais na produção. Hoje em dia, os setores de mineração e de defesa somam aproximadamente 80% do faturamento da Plasmolde. Setores de óleo e gás, a área da saúde e eletrônicos também são fundamentais para a empresa.
— Diversificamos, porque antes éramos mais focados em linha branca e automotivo. Mas como sempre tivemos esse know how (conhecimento) na parte mais técnica em função da experiência do meu pai, começamos a ir para áreas mais técnicas — explica o gerente de projetos.
A mudança de postura também foi importante para que a família pudesse ter mais controle sobre os processos tanto de produção como financeiro, o que também auxiliou numa melhor gestão da Plasmolde, aumentando o faturamento e o fluxo de trabalho.
— Nos últimos anos, de 2019 para cá, começou um trabalho mais ativo (de produção), porque sempre fomos comprados, nunca saíamos para vender, sempre produzíamos para outras ferramentarias, e começamos a mudar um pouco e atender em nichos diversos.
Os clientes da empresa são, na grande maioria, do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro. Segundo o gerente de projetos, há algumas conversas para iniciar exportações no futuro, com o Chile podendo ser o primeiro parceiro internacional.
O desafio de qualificar a mão de obra
Na indústria como um todo um dos maiores desafios nos últimos é a mão de obra. Não somente pela escassez, mas principalmente pela qualificação dos profissionais. Tudo isso passa também por manter os jovens dentro neste setor e fazer com que queiram se desenvolver.
Para isso, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) oferece ao menos dois cursos voltados à ferramentaria em Caxias do Sul. Um deles é o de matrizeiro de moldes de injeção e o outro é de ferramenteiro de estampos. Ambos são de 1,6 mil horas, e ocorrem durante dois anos. Em média são encaminhados ao mercado de trabalho cerca de 50 alunos para essas áreas.
No entanto, o Senai está finalizando um novo curso, mais robusto, com 3,2 mil horas, com foco em formar projetistas de moldes para injeção e construtores de moldes de injeção — no segundo ano do curso o aluno vai poder optar entre um ou outro. Esse curso, que substituirá o de ferramenteiro, deve ser em turno integral, e ainda está sendo definida qual a idade inicial para que os interessados possam ingressar nele. A primeira turma deve começar os estudos em fevereiro de 2025.
Conforme o gerente de operações do Senai na educação profissional em Caxias, Igor André Krakhece, este novo curso busca resolver uma das maiores preocupações dos empresários do setor: a qualificação da mão de obra.
— Esperamos que os fundamentos técnicos sejam altos. Se ele quiser permanecer na indústria, o amadurecimento dele, somado ao conhecimento técnico, vai transformar ele em um profissional sênior para a empresa — explica.
Segundo Krakhece, o profissional ferramenteiro é muito procurado, principalmente por todas as exigências que esse setor requer. No entanto, é necessário unir os esforços para que os jovens queiram permanecer dentro da indústria.
— Todas as turmas vão visitar uma indústria para conhecer o ambiente de trabalho e como é a indústria moderna. E também influenciamos a indústria ao dizer que o jovem de hoje é diferente de uma, duas décadas atrás, para que melhore seu ambiente de trabalho e mantenha esse jovem. O Senai tem influência para atração, mas menos para a retenção.