"Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco", disse-me ele, citando Mia Couto. Tinha o livro "E se Obama Fosse Africano?" em mãos e, esperto como é, sabia o quanto adoro o moçambicano. Mais: sabia o quanto eu desejaria ter aquela capacidade de ser lírica praticamente o tempo todo. E, olha, eu até tento.
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Comecei a divagar, então, sobre esses desencontros – ou sobre a falta de encontros, até mesmo os que desejamos, mas nunca promovemos. Lembrei o quanto gostava de ir conversar com minha avó às sextas-feiras, depois de fazer as unhas, falar sobre a semana, acariciar suas mãos macias. A vó não está mais lá, nunca mais irei revê-la, mas sei que ao menos estive presente. Na outra, gostava de pular na cama, do suco de laranja bem doce espremido na hora e da função de fazer grôstolis nas manhãs preguiçosas sem o imperativo tic tac do relógio. Só que isso está longe de ser uma regra na vida, ao menos na minha.
Um amigo vai ser pai e só descobri quando a mulher estava com seis meses de gravidez. Estou tentando encontrar uma amiga há meses e torcendo para que nossas agendas permitam que a gente se veja antes do Natal – e fico um pouco preocupada, afinal, o Natal já está logo aí.... Ai, Mia, algo deve estar mesmo muito errado para essas informações – as que importam, de fato – chegarem em menor velocidade do que as superficiais. Penso em todas as séries que assisti nos últimos dias e como toda aquela ficção não serviu para nada.
Mea culpa. Foi o que pensei antes de cogitar interrompê-lo na leitura. Podia apenas ter ficado contemplando aquele momento – o tal lirismo que persigo – mas, não, estava ouvindo-o e já preocupada com algo sem saber exatamente o porquê.
Não cheguei a dizer, mas me dei conta de que, definitivamente, vivemos como imortais. Fazemos um monte de atividades protocolares, que certamente não faríamos se tivéssemos noção real da nossa finitude. Consideramos superurgentes um monte de bobagens (alguém aí ousa deixar a timeline desatualizada ou os capítulos da segunda temporada de Narcos assistidos pela metade?), embora elas não tenham a menor importância.
É isso: confundimos urgente com importante o tempo todo. Esquecemos do que vale a pena e só corremos contra o relógio, para dar conta das tarefas diárias. Temos todas as chances de nos encontrar, mas nos perdemos nas possibilidades. Precisamos descer, abandonar a pressa, deixar as estradas se cruzarem. Ou nos esforçar mais para tentar buscar algum lirismo em toda essa correria, para que possamos, ao menos, apreciar a paisagem pelo caminho.
Opinião
Tríssia Ordovás Sartori: vivemos como imortais e desencontrados
Consideramos superurgentes um monte de bobagens, embora elas não tenham a menor importância
Tríssia Ordovás Sartori
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