
Tenho o hábito de reler trechos de livros antes de dormir. Às vezes escolho-os a esmo nas estantes, de outras me demoro até achar aquele que case com meu estado de espírito. Sei lá, é quase uma terapia de apaziguamento da mente em preparação para o sono, como se na busca do que já é conhecido eu pudesse criar certo conforto contra o fluxo sempre ansioso da cabeça. Noite passada, o livro eleito foi Os Italianos no Rio Grande do Sul – Cadernos de Pesquisa, de Thales de Azevedo, editado em 1994 pela caxiense Educs. É uma maravilha de livro.
São apontamentos do antropólogo baiano registrados em diversas visitas feitas a Caxias do Sul de 1955 a 1973. São preciosos fragmentos da vida pulsante de uma cidade surgida da imigração italiana mas em contínuos processos de misturas culturais. Thales já estivera outras vezes por essas bandas, nos anos 1940, colhendo material para o excepcional Italianos e Gaúchos – Os Anos Pioneiros da Colonização Italiana no Rio Grande do Sul.
Era natural, pois, que ele prosseguisse em seus estudos da cultura que por aqui se formava. Muito depois, já grande amigo de nomes como José Clemente Pozenato e Cleodes Piazza Ribeiro, ele cedeu os cadernos manuscritos ao projeto Ecirs, da UCS, que publicou tudo como o livro que me pus a revisitar. Minha surpresa foi constatar que as pesquisas se iniciaram no verão de 1955, há 70 anos, portanto. O autor assim inicia o texto: “Saí de Porto Alegre, ônibus, as 13h40min, cheguei a Caxias às 17h30min, após parada no Morro Reuter”. Quase quatro horas de viagem! E eu que reclamo quando o Expresso Caxiense passa de duas horas hoje...
Na cidade, nada escapa ao olho de pesquisador do virginiano Thales de Azevedo. A dinâmica Caxias vai sendo desenhada tanto em seus aspectos físicos quanto nos sociais e até transcendentes. O visitante conversa com todo mundo, toma nota e muito observa. Ouve desde o porteiro do hotel onde se hospeda até o prefeito, do padre às donas de casa. Colhe os comentários sem julgamento. Lendo-os hoje, podemos reconhecer permanências e transformações dos valores fundadores da atual Caxias. Transcrevo a seguir trechos de algumas notas.
“O Prefeito Major Triches, Euclides, foi muito cordial; acha Caxias ótima para um estudo sociológico. Diz que aqui há muita harmonia entre as classes”.
“Sr. Oscar, 12 jan. Existem pobres em Caxias, não muitos, mas bastantes, sobretudo essa gente que vem de fora na esperança de emprego mas que não tem habilitações”.
“Oscar, 14 jan. O Juvenil e o Juventude são mais ou menos o mesmo; o Juvenil tem mais simpatia, é mais antigo, porém os dois equivalem-se em categoria. O Guarany é constituído de elementos modestos: operários que subiram. (...) Os cinemas da cidade não ficam a dever aos melhores de Porto Alegre; todos da mesma categoria. O Real é o menos decorado. Todos cobram o mesmo preço. Barram a entrada dos pretos quando mal vestidos; antes faziam o mesmo com os brancos”.
“Brandalise, 17 jan. Não é comum as moças se encontrarem com os rapazes para conversar (namorados) na rua; só por exceção e até 8h30min ou 9h da noite. Quando se vê um par assim depois das 9h, já se diz que são jacu (mulheres da vida).”
“22 jan. Contou-me Spadari: quando um ‘brasileiro’ é trabalhador, se diz que parece ‘italiano’ ou ‘alemão’; quando um destes não trabalha, diz-se que parece ‘brasileiro’”.
“14 fev. Stuart chama atenção para a existência de colonos, vestidos de gaúchos, guiando camionetes e ‘jeeps’”.
“17 fev. Sr. Modesto, Delegado de Polícia. Aqui são raros esses casos [de assassinatos e ferimentos graves], mas a delegacia tem muito mais trabalho: ‘São muito miudeiros. Por qualquer coisinha – uma galinha que come uma couve do vizinho – vêm à polícia queixar-se’”.
Bah, acabou o espaço. Mas, no clima de celebração dos 150 anos da fundação de Caxias do Sul, prometo revisitar as notas do Thales.