Enquanto flanava no bairro aquietado pelo sábado e sob a luz de um crepúsculo de Sagitário, fui divagando sobre a segurança urbana. O entorno sugeria o tema, com casas e prédios entre muros, grades, cercas elétricas e serpentinas com lâminas afiadas. Sempre me espanto com o aparato cada vez mais agressivo que vai se instalando na separação do público e do privado. Claro, viver ficou mais perigoso, e vale tudo para manter à distância o que porventura ameace a integridade de pessoas e a posse de coisas.
A memória chamou um tempo em que ainda não havia esse modelo tão irônico de proteção, que condena os cidadãos a prisões domiciliares por medo de supostos bandidos à solta. Recordei cenas de quando a própria cidade ainda preservava ares provincianos e era possível caminhar nas ruas até altas horas sem tanto medo a sobressaltar. Fiquei a matutar se ainda haverá por aí alguma cidadezinha que durma de janelas abertas e cujas portas se fechem somente ao frio da noite.
Antes da próxima esquina, cruzei com um homem levando a passear dois cães desses de guarda, com pinta de nada amigos. Meu instinto apitou, na paranoia de o homem não conseguir conter a guia dos cães, e abri espaço na calçada para que passassem com folga. Fui ignorado, ainda bem. Constatei que até certos cachorros sequer eram conhecidos por aqui até virarem equipamentos vivos de proteção. Em que momento, minha gente, o outro deixou de ser apenas mais um humano para virar um potencial inimigo?
Adiante, vendo uma mulher ativar o alarme do carro que estacionara, outra vez fui fisgado pela nostalgia, mas de pronto me perguntei se o passado pode mesmo oferecer um referencial de segurança plena. Creio que não. Desde que o mundo é mundo, tememos o outro, o estranho, o diferente. E no passado isso era até pior.
Que segurança havia, por exemplo, numa aldeia da antiguidade? A paz de laços familiares podia a qualquer momento ser violada pela invasão brusca de uma tribo guerreira, vinda sabia-se lá de onde, com intenções apenas destrutivas. Após a pilhagem do que fosse útil, o resultado podia ser um incêndio geral, estupros, mortandade em massa ou o subjugo na escravidão da população inteira. Não, não era melhor o passado.
Noutra quadra, vi um homem conferindo o que fosse reciclável, plásticos ou metais, num contêiner. Metade do corpo para dentro, as pernas quase ao alto, ele ia jogando para trás o aproveitável. Por essa insólita posição, nem cheguei a ver o rosto dele, que tampouco me viu passar. Era mais um dos inúmeros anônimos que reeditam, na selva urbana, a ancestral condição de caçador coletor. Ao menos estão trabalhando, ganhando a vida honestamente, devem pensar os de dentro das casas, temerosos da ronda dos rotulados vagabundos.
E então o Sol desceu, a noite se anunciou, e precisei voltar para casa. Já não convinha andar absorto por aí, sem a luz diurna a me amparar. Melhor buscar o refúgio das grades domésticas. Antes de chegar em casa, contudo, outra cena ainda me deteve. No vão entre um prédio e o muro de uma casa, um homem dormia feito pedra. Dois grandes papelões faziam as vezes de tenda, encobrindo-lhe o corpo quase inteiro, deixando de fora somente os pés muito sujos. Um sem-teto, mais um, em meio a tantos da variada fauna urbana.
No lar, doce lar, a mente aquecida pelo fogo de Sagitário não sossegou. Viajei longe ao passado. Pensei nos romanos, que chamavam de bárbaros os povos para além de suas fronteiras físicas e culturais, até virem o próprio mundo acabar com as invasões dos ditos bárbaros. Pensei nos reinos feudais, cercados por altos muros e torres de vigia, mas que também ruíram. Pensei em nós, cercados e apavorados, cada vez mais egoístas.
E ainda estou a imaginar que muros de desumanização e desigualdade ainda precisamos derrubar para nos livrarmos de tantos muros reais que nos asfixiam a vida.