Os colonizadores portugueses pisaram por primeiro no Brasil sob o signo de Touro. E desde a praia se extasiaram com a promissora riqueza daquela terra exuberante habitada por uma gente dócil e receptiva. Logo os forasteiros atestaram o pendor musical e festivo dos nativos pelo modo como estes folgaram e dançaram quando um gaiteiro da frota tocou na praia. Qual um destino, plasmou-se ali uma vocação da nova terra para a música – um dom de Touro.
Hoje a música popular é a mais consumida e reconhecida expressão das tantas misturas da cultura brasileira. Nessa arte, dois dos seus maiores gênios foram taurinos: Pixinguinha e Dorival Caymmi. E também o é um dos maiores letristas do Brasil: Paulo César Pinheiro, que completa 75 anos neste domingo. Sua obra fecunda – mais de mil composições gravadas, em parceria com cerca de 150 craques, do citado Pixinguinha a Baden Powell e Tom Jobim, de João Nogueira a Guinga e Lenine – compõe um vibrante painel da alma brasileira.
Carioca do subúrbio, Paulo César cedo conviveu com as sincréticas manifestações da cultura popular, enquanto se embebia de literatura. Um jorro natural de poesia o levou aos versos, e ele não tardou a versejar no cancioneiro. Ainda rapazote, em 1968, viu o país cantar com Elis Regina o refrão “quando eu morrer me enterre na Lapinha”, letra sua para música de Baden. A canção falava de Besouro, um lendário capoeirista baiano.
Antes até desse sucesso, com apenas 14 anos, Paulo já havia escrito Viagem, musicada por João de Aquino, ainda hoje uma das mais líricas letras da MPB. Veja que imagens: “Oh, tristeza, me desculpe / Estou de malas prontas / Hoje a poesia / Veio ao meu encontro / Já raiou o dia / Vamos viajar”. Em 1970, outro samba com Elis caiu na boca do povo, com o refrão: “Quaquaraquaquá / Quem riu / Quaquaraquaquá / Fui eu”. Pronto: Paulinho já era mestre, a transitar por canções em todos os ritmos.
O poeta encontrou sua musa em 1975, a luminosa Clara Nunes, com quem se casou e viveu até a morte precoce dela, em 1983. Na voz de Clara, vieram outros grandes sucessos, como As Forças da Natureza, Canto das Três Raças, Menino Deus e Portela na Avenida. Nesta última, o letrista entrelaça o sagrado e o profano – seguindo o fluxo da cultura brasileira – ao comparar o desfile da escola de samba a uma procissão religiosa. É poesia em alto nível sem perder a comunicação com o popular.
Com Sol, Lua, Mercúrio e Vênus em Touro, Paulo César Pinheiro mapeou com aguçados sentidos as riquezas naturais e culturais do Brasil profundo. Falou de rios e sertões, de santos e orixás, de banhos de ervas e rezas. Fez letras sobre as principais escolas de samba do Rio de Janeiro, seguindo a rítmica de cada uma, bem como revelou os blocos afros e afoxés da Bahia.
Fez música e letra sozinho e também gravou discos cantando. Tão doce quanto criativo, o poeta vive a espelhar nossa verve mestiça.
Em tempos tão doentios, é balsâmico ouvir e ler os recados desse artista que reaviva as forças criadoras de nossa natureza mais pura. “Não sou do tempo das armas / Por isso ainda prefiro / Ouvir um verso de samba / Do que escutar som de tiro”, canta ele, evocando as favelas de outrora. E clama pela terra sã: “E o canto dos pássaros se calou / E o leito dos rios secou / O país todo é uma tristeza / E poeta que sou / Num canto de dor / Eu choro pela natureza”.
Estou contigo, poeta, na esperança redentora de que: “As pragas e as ervas daninhas / As armas e os homens de mal / Vão desaparecer nas cinzas de um carnaval”.