
Numa apropriada coincidência, o Sol entra em Peixes em pleno sábado de Carnaval. A ordem é cair na folia! Peixes rege os pés, e estes parecem ganhar vida própria na vibração da bateria ou ao toque do agogô. Dos pés às cabeças, o frenesi pisciano de dissolução arrebata os humanos. Muitos mergulham no caos das ruas, outros dão volta e meia nos salões, outros mais se embriagam no embalo das ondas do mar. Tantos fogem para as montanhas, uns a descansar, outros a orar em vigílias ou a meditar em retiros. Peixes é tudo isso: um apelo imperioso a perder-se de si, pelo profano ou pelo sagrado, para se reencontrar maior, noutro porto, aqui ou acolá.
Assim como Peixes, signo simbolizado por dois peixinhos nadando em sentidos contrários, o Carnaval é paradoxal. É a loucura consentida que ajuda a manter a ordem social. É doideira e ritual. É herança cultural das celebrações de Dionísio, o Baco, que oferecia a transcendência pela via dos instintos. Essa sacralidade profana da festa aparece nas imagens que o poeta Paulo César Pinheiro evocou no samba Portela na Avenida, cantado por Clara Nunes, em que o azul da escola de samba espelha o manto da padroeira Nossa Senhora Aparecida. Diz a letra: “E o povo na rua cantando / É feito uma reza, um ritual / É a procissão do samba abençoando / A festa do divino Carnaval”.
O historiador carioca Luiz Antonio Simas compara o Carnaval a um “feixe de luz que entra pela brecha da porta que alguém tenta fechar”. Da maior importância para o povo brasileiro, a festa seria um duelo entre o corpo e a morte, no qual as camadas subalternizadas da sociedade reagem, criando potência de vida, à repressão constante de sua cultura. Para Simas, o corpo carnavalizado, suado e dono de si, “é aquele que escapa, subindo no salto da passista, ao confinamento da existência como projeto de desencanto e mera espera da morte certa”. Imagine como seria o Brasil, com suas desigualdades abissais, sem o luminoso feixe de resistente alegria do Carnaval...
Por conta dos dois anos de suspensão da folia pela pandemia da Covid, este Carnaval de 2023 parece reforçar seu natural convite à alegria desmedida. O poeta Manuel Bandeira, em poema de 1925, definiu bem essa compensação carnavalesca dos tempos sombrios: “Sim, já perdi pai, mãe, irmãos, / Perdi a saúde também. / É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. // Uns tomam éter, outros cocaína. / Eu tomo alegria! / Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda”.
O Brasil já viveu um parecido clima de desforra festiva no Carnaval de 1919. Foi a folia imediatamente posterior à terrível Gripe Espanhola, que espalhou a mortandade sobre um planeta ainda combalido pela Primeira Guerra Mundial. No livro Metrópole à Beira-mar, Ruy Castro descreve a euforia que tomou a então capital federal desde o começo daquele ano. Num jornal, versos assinados por um tal Pierrot conclamavam: “Quem não morreu na Espanhola / quem dela pôde escapar / não dê mais tratos à bola / toca a rir, toca a brincar”. E o Carnaval carioca de 1919, de fato, foi o da revanche contra a morte.
E então chegamos a este Carnaval, enfim possível, com o peso acumulado de tanta tristeza, tantas perdas, tanta opressão que nos abateu por tempo demais. Há uma carência generalizada de vida e de amor. Então, que cada um possa se dar o que entende por prazer e alegria, seja na rua, no mar ou num retiro. Porque a pulsão de vida, mais uma vez, venceu a pulsão de morte. E isso precisa ser celebrado.