O sábado amanheceu tempestuoso. Sob raios e trovões, chuva e frio, o dia me sugeria ficar até tarde na cama, quem sabe coberto até a cabeça. Mas o corpo se ligou, pedindo ação. E antes das nove eu já estava a preparar o almoço. No hábito de sempre cozinhar ouvindo música, pus a tocar um antigo Martinho da Vila. Depois, Clara Nunes. Depois, Jorge Ben Jor. Meu Deus! Que Brasil era esse que saía dos discos? Que grandeza era essa, tecida de tão ricas e coloridas misturas? O corpo, elétrico feito o céu de raios, balançava feliz no picar de alhos e cebolas. Diante da pia, lugar tão pouco cívico, eu era um brasileiro pleno de bom orgulho. Ah, que falta fazia esse sentimento de pertencer a um país grandioso, apesar da redução a que parece preso!
Isso é Libra, pensei, lembrando que o Sol passa pelo signo da busca do equilíbrio. Quem sabe o céu tormentoso estivesse a me conduzir ao oposto prato da balança da percepção, onde pesam as tão necessárias razão, arte e paz. Perguntei-me desde quando sentia tanta vergonha de ser brasileiro. Antes ou depois de uma atarantada maioria optar por apequenar-se, refém de medos irracionais? Antes ou depois de a bandeira nacional embalar pacotes de ódio e preconceito? Ok, isso passará, como tudo passa, mas pode demorar até compreendermos as motivações alucinadas dessa quadra histórica em que um Brasil monstruoso late retrocessos qual um cão danado.
A astrologia, estudiosa dos ciclos da vida, já avisa: os encontros entre Saturno e Plutão são sempre assim, regurgitam sombras, como a nos lembrar que, a despeito de todos os progressos, nós, humanos, ainda carregamos a tal cauda de lagarto de que falou o psicólogo Carl Jung. Agora, nossos répteis regredidos urram no poder, para felicidade do bloco dos ressentidos. Mas uma coisa eu sei: meu país não é esse caldo de soberba e desumanidade. E Libra aponta outras luzes. Sim, gente, esse Brasil que está aí, nos noticiários, tão arrogante quanto violento, não representa o todo desse país que nos acostumamos a reconhecer como continental, sincrético, amistoso e compassivo. O chamado Brasil profundo é outra coisa. E é bom – pode apostar.
Idealização libriana, esse pensamento? Talvez. Sou da turma dos otimistas. Sempre aposto no bom senso, na ética e na verdade como forças superiores nas rotas do humano. Mas sou consciente de que hoje amargamos, diante do espelho do real, a cruel aceitação da oposta imagem: o que temos de pior. Pois tudo o que emite luz também projeta sombras. Por detrás do Brasil querido e receptivo, também existe um Brasil autoritário e dado a privilégios e hierarquias. E esse Brasil sombrio, que perdeu voz na leva de tantas conquistas sociais e democráticas, agora vomita fel e pus, vingativo e destrutivo. Mas são ciclos de expurgos da história. Feito tempestades, hão de passar.
Essa visão de tempos cíclicos me acalenta na travessia. É minha forma de resistir. O céu anda tenebroso, e parece que o mal venceu. Mas temos tanta bondade, camaradas! Para cada projeto de prepotente ditador, há mil pessoas decentes e do bem. A sombra pode nos assustar pelo impacto e até nos paralisar, mas nossa luz, creia, é muito maior. E temos a força do canto de Martinho, Clara, Ben Jor, Gal, Bethânia e tantas outras vozes. Temos nossa própria voz por gritar, nas urnas, nas canções, onde der. A balança da paz precisa retomar seu lugar. Como já nos lembrou o velho samba em outros tempos escuros, amanhã vai ser outro dia. Vale repetir: amanhã vai ser outro dia.