No filme alemão Nosferatu, de 1922, um navio à deriva aporta numa cidade. Ratos saem do porão e espalham a peste. A população tranca-se em casa, para proteger-se, ainda sem saber que o trevoso vampiro Nosferatu também viera a bordo. O filme de W. F. Murnau, com sua estética de sombras, costuma ser interpretado como uma metáfora do mal que se ocultava nos porões emocionais da Alemanha e que resultaria no horror nazista. No céu daquele ano do filme, Saturno e Plutão estavam em ângulo tenso, indicando situações extremas e sombrias, nos limites entre civilização e barbárie, poder e destruição. Por sinal, já em 1922, o fascista Benito Mussolini assumia o governo na Itália.
Configurações que se repetem ciclicamente no céu costumam evocar imagens semelhantes entre nós. E a arte é radar dessas imagens, que podem soam proféticas. Anos depois de Nosferatu, enquanto Saturno e Plutão se alinhavam em conjunção, o mundo se assombrava com os bastidores da Segunda Guerra e a necropolítica do nazismo e do fascismo. Como pôde o homem civilizado ser capaz de tamanhas atrocidades contra os semelhantes? Nesse contexto, em 1947, o escritor franco-argelino Albert Camus publicou o romance A Peste, descrevendo o efeito de uma epidemia numa cidade que precisa isolar-se. A peste aciona o pior e o melhor do humano, da exploração da tragédia à solidariedade. Esse romance volta aos holofotes agora, em 2020, quando outra conjunção entre Saturno e Plutão reativa os temas da epidemia e do isolamento, em meio a questões morais, sociais, econômicas e políticas.
Na sintonia simbólica entre eventos celestes e terrestres, entre arte e realidade, a conjunção entre Saturno e Plutão anterior à atual, ocorrida no começo da década de 1980, foi precedida, em 1979, pela refilmagem de – ora, veja! – Nosferatu, feita pelo também alemão Werner Herzog. A cena da cidade contaminada pela peste, neste filme, é de uma beleza dolorosa, com a população entregando-se aos prazeres carnais diante da morte iminente. E logo a vida real seria sacudida por uma epidemia que associava o sexo à morte. Era a Aids, purgando tabus, mudando as relações, transformando o mundo.
A atual pandemia do coronavírus, em meio às cíclicas e dramáticas quebras de estruturas dos encontros de Saturno e Plutão (conjuntos como no eclodir da Peste Negra na Europa, no século XIV), também trouxe à baila o livro Ensaio Sobre a Cegueira, do português José Saramago, nascido naquele citado ano de 1922 e, portanto, com Saturno e Plutão ligados no mapa natal. É fácil reconhecer no cenário atual aspectos desse livro sobre uma epidemia estranha que deixa as pessoas cegas. Quando lançou o romance, em 1995, o incisivo escorpiano Saramago afirmou à Folha de S. Paulo: “Nós estamos todos cegos. Cegos da razão. A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira”.
Apesar de a narrativa denunciar o selvagem egoísmo humano, Saramago aposta no afeto solidário como uma saída feminina para a crise, tanto que uma mulher é a única personagem a continuar enxergando num universo de cegos. E resume: “Acho que a grande revolução, e o livro fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estavam resolvidos”. Pois bem, os encontros depurativos de Saturno e Plutão também fazem aflorar forças curativas e regeneradoras, capazes de reinventar o mundo. A natureza se impõe com crueza à arrogância humana, mas a vida insiste em prosseguir, renovada. Lutemos por essa nova vida, mais justa e fraterna. Lutemos contra a necropolítica dos modernos Nosferatus.
Leia também
De dançarino de rua na escola a bailarino da Cia Municipal, conheça a trajetória de Akácio Camargo
Alternativa para muitos durante a pandemia, confira dicas para ter um home office mais produtivo
Conforto de casa, mas com disciplina de escritório: o que evitar para não baixar a produtividade em seu home office