No pano de prato sobre o qual deposito as louças que terminei de lavar, leio esta exortação, que é quase um cântico religioso: "Dai graças a cada amanhecer." Lembrei de amigos que me cumprimentaram no início do ano dizendo, com sutil ironia: Feliz 2018! Pois não há como almejar isso nos próximos doze meses, dada à gravidade da situação no nosso país. Mas será que estamos assim, à deriva, a ponto de não conseguir vislumbrar algo que dê gosto à existência, apagando as delicadezas que criam pontes de afeto entre uns e outros? Reflito e concluo que tenho por que me sentir abençoado. Continuo acompanhando apaixonadamente o itinerário da lua. Em noites mais inventivas ela passeia entre espessas nuvens, criando um cenário de luz e sombra que me deixa liricamente extasiado. No fim de uma tarde chuvosa, depois de um temporal, vi um arco-íris tão esplendoroso que parecia ter saído de um filme do Kurosawa. A água que caiu do céu encharcou as flores que cobrem os canteiros, intensificando as manchas amarelas, roxas, brancas. Volúpia, pura exuberância que se manifesta diante de meus olhos. Adubo a terra que receberá as mudas de aspargos, de manjericão, de hortelã. Observo os figos (frutos? flores?) que assomam na planta de galhos retorcidos. Imagino sua polpa sumarento alimentando meus lábios. Sou o discípulo de Fernando Pessoa que adora a Natureza: divindade que se mistura com os homens. E ri, e acha encanto nas coisas mais banais.
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