No pano de prato sobre o qual deposito as louças que terminei de lavar, leio esta exortação, que é quase um cântico religioso: "Dai graças a cada amanhecer." Lembrei de amigos que me cumprimentaram no início do ano dizendo, com sutil ironia: Feliz 2018! Pois não há como almejar isso nos próximos doze meses, dada à gravidade da situação no nosso país. Mas será que estamos assim, à deriva, a ponto de não conseguir vislumbrar algo que dê gosto à existência, apagando as delicadezas que criam pontes de afeto entre uns e outros? Reflito e concluo que tenho por que me sentir abençoado. Continuo acompanhando apaixonadamente o itinerário da lua. Em noites mais inventivas ela passeia entre espessas nuvens, criando um cenário de luz e sombra que me deixa liricamente extasiado. No fim de uma tarde chuvosa, depois de um temporal, vi um arco-íris tão esplendoroso que parecia ter saído de um filme do Kurosawa. A água que caiu do céu encharcou as flores que cobrem os canteiros, intensificando as manchas amarelas, roxas, brancas. Volúpia, pura exuberância que se manifesta diante de meus olhos. Adubo a terra que receberá as mudas de aspargos, de manjericão, de hortelã. Observo os figos (frutos? flores?) que assomam na planta de galhos retorcidos. Imagino sua polpa sumarento alimentando meus lábios. Sou o discípulo de Fernando Pessoa que adora a Natureza: divindade que se mistura com os homens. E ri, e acha encanto nas coisas mais banais.
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Dou graças por ser feliz sendo quem sou. E não outro, num desejo doentio de alteridade que só nos faz sofrer. Aprendi a estar sozinho e bem. Da mesma maneira que me regozijo com a presença de quem se sente meu irmão ou dos que me desafiam, pensando diferente, confundindo o ego cheio de certezas. Findarei logo ali, daqui a um mês ou trinta anos. Logo ali. Guardo os ensinamentos dos antigos gregos. São o meu Sermão da Montanha. Penso, com um travo de melancolia, que não me despedi de algumas pessoas amadas que estavam partindo. Fui incapaz de reconhecer a véspera. Hoje procuro estar mais atento, lendo sinais que exigem vigília e atenção. Sei que a vida pode ser poética, amorosa, mas obedece a uma mecânica seca que minha ignorância não alcança. Traço mentalmente a escala do um ao infinito. Sou o cosmos. Sou nada. Passarei sem deixar grandes rastros, como, no mais, cada um de nós. Espero pela dádiva de ser esquecido. Por ora, a consciência brota como uma lâmina que reflete o sol e corta a carne.
Sou. Até quando? Invoco Marco Aurélio, o mestre sereno e implacável: "A lembrança de todas as coisas fica em um instante sepultada na eternidade." Caminho anônimo, desprezando a vontade de poder. Almejo mais: quero ser senhor de mim mesmo.