Gosto da vida assim, sem uma ordem aparente; vida imprevista, que acaricia e açoita, que não se deixa domar jamais. Já fui tão metódico que planejava meu dia com inútil antecedência, sofrendo quando meus planos não davam certo. Mas não existem vésperas para armazenar os nossos desejos. Tombos e delicadas piruetas nos esperam logo ali, à revelia de nossa vontade. Não sei o que me espera e aposto tudo no imprevisível, na surpresa. Continuo gostando da rotina, mas em doses miúdas. Interesso-me em descabelar o que vejo à minha frente, tirando das prateleiras o que foi separado por cor, tamanho, textura. Que meu coração não seja tão compassado, acalmando-se ou acelerando na medida em que o nutro de novas emoções. Quero versos soltos, amigos que me abracem, partam e voltem. A inconstância é a própria condição humana, nutrindo-se das perdas para formar um novo húmus. Que importa saber se já vivi mais da metade da minha existência? Meus últimos dez, ou vinte, ou trinta anos poderão ser mais densos e poéticos que os demais.
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Contento-me com a quantidade de horas que me foi destinada ou que o acaso depositar em minhas mãos. Ao acordar, bem cedo, visito meu jardim como se para confirmar meu amor pelas flores, pelo vento e pela suave tessitura que compõe cada folha, abrigo de pássaros e insetos. À noite, durmo com a janela do quarto aberta, para deixar que a alma se encharque com o canto dos sapos, dos grilos e, quiçá, com o voo tardio de algum vagalume. Sou feliz por ter tido poucas privações. Acompanhei a última respiração de pessoas que amei muito e espero ter ao meu lado, no momento final, alguém que segure a minha mão. Espero ter apenas pequenos arrependimentos. Nada que me leve a fazer pactos tardios com um Deus que sempre foi para mim uma possibilidade, não a arrogância de uma certeza ou de uma negação. Continuo sorvendo tudo com imenso prazer, como se a liberdade consistisse em apenas aceitar, fugindo da tentação fácil dos julgamentos. Amo filosofia, acariciar o pelo dos cães, o perfume das glicínias, páginas lidas e relidas dos livros que guardo em minha biblioteca. Cozinhar, plantar, esquecer momentaneamente quem sou, praticando meditação. O melhor de tudo é ainda continuar me espantando, como se o mundo tivesse sido inaugurado ontem.
As íris florescem. Duram somente um dia. Ao lado delas, um muro de pedras respira a eternidade. Em meio a isso, nós, humanos. Fabricamos guerras, amamos, contemplamos, rimos, sonhamos. Longe de uma ordem que imaginamos existir. Tudo se faz, indiferente ao que acreditamos.