"Nós viemos a este mundo para vê-lo e ouvi-lo. Não precisamos ser alguém. Todos temos um sentido para nossas vidas."
Com estas palavras, a velha senhora do filme Sabor da Vida, dirigido por Naomi Kawase, vai se despedindo daqueles que amou. Com serenidade, sem exultar ou se queixar de nada. Simplesmente se entregando ao que é depositado à sua frente, dia após dia. Seus conhecimentos eram fruto da observação direta, do contato intenso com tudo o que fazia parte do seu cotidiano. Não desejava e nem deixava de desejar. Tinha aprendido uma lição muito mais valiosa: o que existe é bom, mesmo a dor, porque nos coloca em contato direto com os sentimentos, as sensações. Talvez aqui a palavra alegria seja a que mais se aproxima de seu permanente sorriso, mesmo com a saúde debilitada, já se aproximando dos oitenta anos. É tudo o que temos, é tudo o que nos é oferecido. Não existe o melhor lugar, a pessoa perfeita, a comida mais sublime. O que conta são as experiências e estas são filtradas pelo nosso olhar, longe da neutralidade. Dezenas de pessoas que vivenciam a mesma situação carregarão dentro de si percepções diversas, singulares. Mas quando a alma está predisposta a absorver o que lhe faz bem e o que a machuca, sem distinção, já se desenha um campo aberto para a doçura.
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Paro um instante de escrever. É domingo de manhã. Há o perfume de laranjeiras no ar. Nuvens passeiam preguiçosamente pelo céu. Aqui e ali, beija-flores fazem voos rasantes. Um vento frio acaricia minhas costas. Estou alimentado de silêncio. Desconheço o que me aguarda e tampouco incendeio a minha imaginação. Permaneço, sim, atento à respiração, ao coração que bate. É tal a tranquilidade que penso ouvir a voz da sábia personagem do filme. Para quem é capaz de amenizar as expectativas, não há lugar indesejado ou encontro que não seja aprendizagem. Acorda-se com o sol e deita-se quando a noite cobre a terra. O que se faz é simplesmente o que se faz. Amanhã teremos novas tarefas, mas pensar nelas é desperdiçar tempo. A anciã ensina ao jovem que a emprega em seu restaurante a observar as cerejeiras em flor. Sua expressão triste e de fracasso adquire, aos poucos, o colorido que anima os poetas, que exaltam tudo, até a impermanência do que nos cerca.
Mesmo tendo uma rotina permeada pela banalidade e pela repetição, o cozinheiro descobre um arco-íris em meio às panelas engorduradas. Aprende a conversar com os feijões enquanto prepara a pasta que irá rechear seus produtos. Respeita-os como a um outro ser qualquer.
Nem o banal e nem o extraordinário. Apenas a aceitação do que existe.
Opinião
Gilmar Marcílio: ver e ouvir
"Colher o bem e o mal, sem distinção, é um campo aberto para a doçura."
Gilmar Marcílio
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