Por Ricardo Giuliani Neto, mestre e doutor em Direito, artista plástico, escritor
Dia desses um leitão foi salvo dos alemães por uma liminar urgente despachada por um desembargador do Rio Grande. Deu no jornal.
Neste entretempo, uma senhora de noventa e tantos anos aguardava, há dezenas de dias, por decisão judicial que lhe permitisse prolongar a já longeva existência. O MP/RS, em regular procedimento, identificara e recomendara cuidados essenciais. A velha – e o tempo lhe consumiu os entes queridos –, (sobre)vive na epidemia contemporânea da solidão. Acorreu-lhe um sobrinho, filho da irmã mais nova, 86 anos vividos, para que a mais velha não soçobrasse na escuridão e no ocaso. Com ela havia estado duas ou três vezes na vida, não mais, e foi ao juiz para pedir cuidados e assistência.
No morro, 350 crianças padecem pela não-ação de um órgão público que não fez o que deveria no tempo certo. Desde sempre, há 50 anos, a ação social da entidade que as abriga é reconhecida e respeitada por todos. Pela incúria da autoridade pública, a "conta" será paga pelas crianças. A falta da tal certidão – CND – impede o recebimento dos recursos que alimentam, educam e acolhem os rebentos. Pediu-se juiz ao caso.
O direito virou barbárie e crianças, velhos e leitões continuam desiguais. A equidade, o senso de equilíbrio e de utilidade na aplicação da lei perderam-se num (in)compreensível mundo de convicções e solipsismos judiciários. Firulas e "argumentos de autoridade", exóticos aos estudiosos, tem vindo ornamentados por ensimesmamentos e descompromisso; nos restou a libertação dos leitões e das tripas fazer coração para salvar os humanos das iniquidades e do sistema, a cada dia mais autocentrado.
Pobre leitão liberto! "Salvo" pelo justo, fostes mandado para o presunto que empanturrará as mesas dos justos e dos solitários convictos. E não me diga que me disseram, tirando o finado leitão, destas contendas, participei e perdi: com a velha, com as crianças e com o leitão, creia, restar-nos-á adornar mesas para os que ainda podem comer, sobreviver e esvaziar a "Justiça".