É difícil ter independência e visão ampla, não sectária. Tudo está à flor da pele, o "não" ou o "sim" dividem a todos, mas é fundamental não fugir da realidade. A abertura do processo de impeachment de Dilma leva a perguntar: para que essa exasperação intolerante que paralisa e divide o país?
A política é disputa de ideias e ideais em torno da melhor forma de poder. Mas, pela História afora, governar foi sempre uma guerra pelo poder, com o crime no papel principal. Na era moderna, a democracia representativa surgiu para que o debate e o diálogo político substituíssem o crime.
O cenário do Brasil é outro, porém. Os políticos não dialogam nem debatem, só gritam e repetem pontos de vista, sem ouvir o oponente. Atuam como depositários da verdade única. São mansos na fala e, na mansidão, ocultam a mão que cata a guaiaca e a bolsa alheias.
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Alguns são hábeis e o que são nem transparece. Outros são inábeis e antipáticos donos da verdade, como o PT, que criou o rastro de desconfiança responsável pelo apoio popular ao impeachment de Dilma.
Assim, surgiu a visão de que tudo agora "vai mudar" e "a corrupção terá fim". Se Dilma sair em definitivo, o governo de "salvação nacional" de Temer nos levará à porta do Paraíso!
Mas talvez seja difícil entrar: o novo ministério está cheio daqueles velhos diabos do PMDB e dos partidos da base alugada que foram ministros de Dilma. Ou de Lula da Silva. Alguns, processados em juízo ou citados nas propinas da Lava-Jato, na qual o próprio Temer apareceu mas saiu-se airoso: informou que os R$ 5 milhões recebidos de empreiteiras da Petrobras foram doações eleitorais...
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Nós, brasileiros, temos fama de "criativos" e o ritmo da política o comprova: em que lugar do mundo os aliados de ontem tornam-se inimigos frontais em horas ou dias?
Dilma e Temer governaram juntos, em paz, no primeiro mandato, com PT, PMDB e a base alugada mandando. No segundo, o vice se queixou do estilo de Dilma. Ela tentou contornar e, em janeiro deste ano, disse a frase reproduzida agora na RBS TV: "Não tenho por que desconfiar da lealdade do vice-presidente".
E Temer virou, oficialmente, articulador político de Dilma. Logo, cedeu o posto ao ministro de Aviação Civil, Eliseu Padilha, do PMDB (também ministro com Fernando Henrique), que conhece "um a um" o pendor de cada parlamentar. E, antes de organizar o desembarque do PMDB do governo, ele conduziu a base alugada de 11 partidos. Com exceção do PDT, os alugados votaram pelo impeachment.
Agora, Padilha chefia a Casa Civil e coordenará o "governo de salvação nacional" de Temer.
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O PT de Lula implantou um governo inerte e populista, de alianças a esmo, e ampliou a corrupção que vem de longe. Dilma prometeu "uma faxina", sem ir adiante. Na Petrobras, a corrupção continuou solta, guiada pela astúcia dos "operadores" do PMDB e do direitista PP, que virou aliado preferencial, como a Lava-Jato mostrou.
A cobiça guiou os atos políticos. E tudo tende a repetir-se agora. Como vice, Temer foi o grande articulador do "impeachment", algo despropositado, como se o engano e traição fossem um método da política, não uma artimanha vil. Se até a guerra tem sua ética e leis, o que dizer da política?
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O Senado não repetiu a forma tosca da Câmara, mas tampouco examinou as teses do impeachment. Houve só um debate de monta _ entre o jurista Miguel Reale (autor do pedido) e o senador Lindbergh Farias, do PT, sobre as "pedaladas". De resto, cada parlamentar tinha opinião formada por antecipação. Quase nada relembra 1992. Lá, as acusações de corrupção feriam Collor pessoalmente. Um crime infamante _ quebra do decoro, o presidente se locupletando num esquema para manter-se no poder. Agora, a ironia: o senador Collor (que virou amigo de Lula e apoiava Dilma) votou pelo impeachment que o vitimou há 24 anos.
Diferente de hoje, Itamar Franco assumiu sem o "salvacionismo" de Temer. Nem houve, como agora, pouco antes da votação, as tétricas ameaças de Humberto Costa, líder do PT no Senado, sobre o futuro. Por tudo isto, não há luto nem festa.
Artigo
Luto ou festa?
Jornalista e escritor
Flávio Tavares
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