Garantir a preservação de um estacionamento meio caído e pichado em uma cidade cujos monumentos incluem fragmentos de um muro que durante décadas foi o símbolo da Guerra Fria, a torre de uma igreja que testemunhou as atrocidades da Segunda Guerra Mundial e palácios prussianos elegantes onde os líderes alemães recebem dignatários estrangeiros é, no mínimo, complicado.
Com o nome escrito em letras pretas em quadrados amarelos na lateral do prédio de seis andares de tijolos e vidro, a Kant Garage passa despercebida; no entanto, fãs do estilo modernista de arquitetura que marcou a Berlim da era Weimar fazem questão de visitar o local, em uma rua movimentada de um bairro da região oeste, para apreciar detalhes como as rampas entrelaçadas em dupla hélice, considerado revolucionário na época da construção, em 1929.
Os donos do edifício querem derrubá-lo - e o primeiro passo foi tomado em julho, quando entraram com um pedido para anular sua condição de monumento, garantida em 1991. Eles argumentam que a estrutura está enfraquecida e que uma reforma seria cara demais para a renda que ele gera.
Agora o futuro de um edifício que sobreviveu às bombas dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial e à campanha pós-guerra de demolição de estruturas antigas depende das realidades do mercado. A Alemanha possui 1,3 milhão de memoriais e prédios protegidos, sendo que a maioria é considerada testemunho vivo de um passado doloroso -, mas numa época de austeridade pública até os monumentos têm que ser sacrificados.
O que não falta à Kant Garage são defensores, que veem no estacionamento um símbolo da Berlim reunificada que despontou como capital criativa da Europa, recebendo um fluxo de artistas e intelectuais que não se via desde seu apogeu nos anos 20. Para marcar os 80 anos da subida de Hitler ao poder, em 2013, a prefeitura vai homenagear as contribuições perdidas de judeus, ciganos e outros que fugiram da perseguição nazista, incluindo o arquiteto que projetou a garagem, Hermann Zweigenthal.
- É um prédio protegido historicamente e, como tal, digno de ser preservado - diz Marc Schulte, vereador que recebeu a petição da empresa dona do estacionamento, Karl H. Pepper Vermögensverwaltung, para remoção do status de patrimônio. Ele explica que a decisão será tomada em conjunto pela Prefeitura e o órgão federal responsável pelo patrimônio histórico e deve levar várias semanas.
Schulte faz questão de frisar que, independente de seu significado, as autoridades não podem forçar um proprietário a manter uma propriedade que não gera renda suficiente para cobrir os custos de sua própria manutenção.
- Todos nós concordamos que o prédio tem seu valor cultural. A questão é: quem vai pagar a conta? - questiona.
Como a rua onde está localizado, o estacionamento ganhou o nome do filósofo Immanuel Kant. Da rua, a fachada de vidro entre as duas paredes de tijolos se destaca como uma janela francesa. Vista da linha de trem que corre na parte de trás, a parede de vidro dos fundos lhe dá um ar incomum de grandiosidade, apesar das rachaduras e das pichações -, mas os detalhes mais engenhosos se revelam apenas para aqueles que vão além do posto de gasolina Sprint e sobem uma das duas rampas elípticas que levam às vagas de cada andar.
Antony Herrey, filho de Zweigenthal, vive em Cambridge, Massachusetts; para ele, elas podem ter sido inspiradas por uma visita ao Castelo de Chambord, na França, com sua famosa escadaria em dupla hélice cuja autoria muitos atribuem a Leonardo da Vinci.
- Meu pai era um grande amante da arte e da arquitetura, e ele esteve em Chambord. Não posso garantir, mas é muito provável que o castelo tenha sido sua inspiração - Herrey, que usa o sobrenome que Zweigenthal adotou depois de fugir da Alemanha nazista, em 1933, conta em uma entrevista por telefone.
Talvez essa conexão explique também por que o prédio ganhou o nome de Kant Garage Palace quando inaugurado. Ele é impressionante não só pela engenhosidade das rampas, mas também pela forma como a luz natural se filtra em cada andar, onde os motoristas estacionavam seus carros em vagas individuais que mais pareciam boxes, protegidas por portas de aço de correr. Conta a lenda que vários acordos secretos, inclusive a transferência de prisioneiros da Facção do Exército Vermelho, um grupo guerrilheiro de extrema esquerda, foram selados atrás delas.
A empresa se recusou a falar sobre o prédio e sua situação financeira, mas a imprensa local afirma que as mais de 200 vagas do estacionamento são alugadas a 80 Euros por mês (cerca de US$106) e todas estão ocupadas.
O fim que outros monumentos de Berlim tiveram não é nada promissor. Há dois anos foi demolido o estádio Deutschlandhalle, inaugurado por Hitler e usado nas Olimpíadas de 1936; o Palácio da República, que abrigou o Parlamento da Alemanha Oriental, várias galerias de arte, um teatro e uma casa de boliche, foi demolida em 2008, apesar da manifestação pública e de uma longa batalha judicial.
Quanto mais nova for a estrutura, mais difícil é defender sua preservação, afirma Ursula Schirmer, da Fundação Alemã de Proteção de Monumentos, que conscientiza o público sobre a situação de locais históricos e pede doações particulares para ajudar a cobrir os custos de reformas e manutenção. E ressaltou a importância que a Prefeitura de Berlim deu aos conjuntos habitacionais modernistas projetados por contemporâneos de Zweigenthal no fim dos anos 20, reconhecidos pela ONU como patrimônio da humanidade em 2008.
- Com casinhas bonitas de madeira ou um castelo romântico é muito mais fácil. Em um estacionamento não há nada para se admirar - ou talvez seja porque a gente ainda não tenha aprendido a apreciar sua beleza - conclui ela.