
Proprietários da casa de jogos Winfil, inaugurada no ano passado em Porto Alegre, os irmãos Filippeddu são naturais da Córsega, ilha francesa no Mar Mediterrâneo que é ponto de turismo, de empreendimentos luxuosos, de máfias locais e de peculiaridades como o uso de uma língua própria, o corso. Até 2014, a Frente Nacional de Libertação Corsa (FNLC), alegando defender a independência do território, atuava tendo armas, assassinatos e extorsões na cartilha de práticas.
André Noel Filippeddu era ligado ao grupo, mais especificamente ao FNLC – Canal Historique, braço armado da organização terrorista. Em meados da década de 1990, o empresário Jacques Dewez inaugurou na Córsega o campo de golfe Speróne. Pessoas ligadas à cúpula da FNLC insistiram para que Dewez recebesse um emissário que se apresentaria como "Monsieur Gulliver". Depois de repetidos telefonemas, o dono de Speróne concordou em encontrar o homem em 11 de dezembro de 1996.
O processo judicial arquivado no Tribunal Distrital de Paris, ao qual a reportagem teve acesso, descreve o encontro: "Na hora combinada, o indivíduo que se apresentava como Monsieur Gulliver foi recebido por Dewez (...), que identificou o homem imediatamente como sendo André Noel Filippeddu".
Os autos também descrevem o conteúdo da conversa: "Filippeddu (...) informou que vinha da parte do FNLC, que o grupo precisava muito de dinheiro e que, em troca de seus serviços, exigia o depósito de quatro milhões de francos antes do Natal".
Os "serviços" citados por André Noel eram uma imunidade que a FNLC concederia ao campo de golfe para funcionar em sua área de domínio.
"Dewez conta que recusou a exigência, dizendo que estava em dificuldades financeiras. Então, André Noel Filippeddu declarou estar 'muito preocupado com as consequências possíveis da recusa'", diz trecho da sentença da Justiça de Paris.
Depois de receber algumas ligações, o pretenso Monsieur Gulliver deixou o encontro com Dewez. Os militantes da FNLC não estavam blefando: na manhã seguinte à tentativa de extorsão de André Noel, cinco indivíduos mascarados e armados invadiram Speróne, renderam empregados e destruíram um imóvel e uma sala de controle de acesso ao campo com a detonação de explosivos. O atentado à bomba foi imediatamente reivindicado pela FNLC — Canal Historique, descrevem os autos da Corte de Paris.
André Noel foi detido em 13 de dezembro de 1996. A partir de seu celular apreendido, a investigação mapeou vários contatos e encontros entre ele e outros nomes da cúpula da organização que perpetrou o crime. Em juízo, ele reconheceu o encontro com Dewez, a adoção do codinome Gulliver e a exigência do pagamento ao grupo armado. No entanto, André Noel disse que a explosão foi obra de François Santoni, ex-chefe da FNLC assassinado em 2001 com dezenas de tiros em um casamento na Córsega.
Ele ainda declarou que foi "obrigado" a se encontrar com Dewez por homens armados que o teriam abordado durante uma viagem de carro pela ilha mediterrânea.
"O crédito que convém dar a essa história é sensivelmente afetado", relata a decisão judicial, citando as versões contraditórias dos fatos apresentados por André Noel ao longo da tramitação do caso.
A sentença do Tribunal Distrital de Paris saiu em 8 de março de 2000. O hoje proprietário da Winfil foi condenado a três anos de reclusão e teve seus direitos cívicos suspensos por cinco anos. Ele foi considerado culpado pelos crimes de formação de quadrilha com o objetivo de preparar atos de terrorismo e de tentativa de extorsão de fundos relacionada a um ato terrorista.
A corte parisiense informou que não consta nenhuma apelação de André Noel à decisão. Ele cumpriu a pena imposta, diz a Justiça, embora não tenha sido localizado o registro do tempo exato que teria passado na prisão.
"A família Filippeddu sofreu diversas e sucessivas perseguições de cunho político na França", afirma advogado que representa a Winfil. Leia mais
* Colaborou Mário Camera