Uma decisão judicial condenou o município de Campo Bom, no Vale do Sinos, a Associação Beneficente São Miguel (ABSM), e a empresa Air Liquide Brasil Ltda. pelo desabastecimento de oxigênio no Hospital Lauro Réus, ocorrido em março de 2021, durante o momento mais crítico da pandemia da covid-19.
A decisão, tomada no domingo (2), foi proferida pelo juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Campo Bom, Alvaro Walmrath Bischoff.
O episódio de desabastecimento causou a morte de seis pacientes, que estavam entubados na Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do hospital. O caso aconteceu em 19 de março de 2021, porém, nos 15 dias seguintes, outros 16 pacientes também perderam a vida.
A Justiça determinou o pagamento de danos morais coletivos no valor de R$ 1 milhão, além de determinar a obrigação de indenização individual dos familiares das vítimas por danos morais e materiais. Eles poderão, com base na sentença, pleitear indenizações, sem necessidade de comprovar novamente a culpa dos réus.
Sentença
A sentença judicial reconheceu a responsabilidade solidária da ABSM e da Air Liquide Brasil Ltda., além da responsabilidade subsidiária do município de Campo Bom.
Após analisar os documentos periciais sobre o caso, o juiz entendeu que houve falha grave na prestação do serviço público de saúde.
Na decisão, o juiz destacou que a Air Liquide foi responsável por omissão e falhas operacionais que resultaram na tragédia. Isso porque ela teria sido acionada nove dias antes dos óbitos em série, com relato de aumento de demanda e solicitação de abastecimento extra. Porém, não teria atendido a demanda do hospital a tempo.
Na sentença, o magistrado concluiu que tanto o hospital quanto a empresa fornecedora deveriam ter adotado medidas preventivas para evitar a tragédia, conforme indicado pelo relatório de auditoria do Departamento de Auditoria do SUS (Deasus). As falhas cometidas foram consideradas determinantes para o desfecho trágico, tornando inegável a responsabilidade dos envolvidos.
O município de Campo Bom foi responsabilizado por ter o dever de controlar, supervisionar e fiscalizar os serviços prestados pelo hospital, que realiza atendimentos pelo SUS. A Justiça entendeu que a administração pública não cumpriu seu dever de garantir a adequada prestação do serviço de saúde, conforme previsto na Constituição Federal.
“Vê-se que o fato, além de ter sido objeto de inúmeras matérias publicadas, aumentando o sentimento de insegurança na saúde pública, e em especial no Hospital Lauro Reus, causa desconfiança, medo e angústia na população, principalmente para aquelas que dependem do hospital público para ver seu direito à saúde garantido, conforme previsto na Constituição Federal, já que não há confiança de que o serviço público que está sendo prestado pelo Estado é adequado e em prol da vida e do bem-estar”, ressaltou o magistrado na decisão.
O que dizem os envolvidos
Hospitalar Vila Nova, responsável pela gestão do Hospital Dr. Lauro Réus
"A Associação Hospitalar Vila Nova, responsável pela gestão do Hospital Dr. Lauro Réus desde agosto de 2022, esclarece que não é parte envolvida na decisão judicial divulgada na data de 03 de Fevereiro de 2024, esclarecendo, ainda, que o fato ocorrido deu-se em período que antecede o início de sua gestão.
Reforçamos nosso compromisso com a qualidade da assistência em saúde e seguimos focados na melhoria contínua da prestação dos nossos serviços à comunidade".
Prefeitura de Campo Bom
Antes de falar sobre a sentença, o Município volta a manifestar sua solidariedade com os familiares das vítimas desse trágico incidente.
A condenação pelos eventos ocorridos foi dos réus Air Liquid e Associação Beneficente São Miguel. A estes cabe cumprir a sentença de condenação. Ao Município somente caberá responsabilidade se eles não cumprirem com a decisão na qual foram condenados.
Quanto a sentença de 26 páginas, o Município está analisando seus detalhes e deverá recorrer no que tange sua responsabilidade subsidiária porque ainda entende que não há nexo causal entre seu agir e o resultado ocorrido.
Ainda, a condenação subsidiária do Município confirma o que se afirmou como defesa durante o curso do processo: não há qualquer conduta do Município que implique em agir culposo pelos eventos ocorridos. A condenação subsidiária corrobora o que se afirma, sendo a responsabilidade imposta ao Município tão somente porque mantinha a contratação da empresa que administrava o hospital, não tendo sido nem sequer negligente no seu dever fiscalizatório do contrato.
Atualmente quem administra o Hospital é a Associação Hospitalar Vila Nova. A ABSM foi afastada em 2022. Além disso, não compete ao Município estabelecer quem é a fornecedora do oxigênio medicinal. Compete ao Município verificar se a Administradora do Hospital mantém contrato de fornecimento de oxigênio medicinal com empresa idônea.
Air Liquide
Contatada por Zero Hora, a empresa informou que se manifestará em breve.
Relembre o caso
As seis mortes ocorreram após instabilidade na distribuição do oxigênio na manhã de 19 de março de 2021. Uma sindicância feita pelo hospital em maio de 2021 concluiu que houve falta de reabastecimento pela Air Liquide. Na época, a empresa afirmou que foi contatada no dia do incidente, que auxiliou remotamente para começar o sistema de backup e, ainda, que forneceu novos cilindros de oxigênio ao hospital.
Em junho do mesmo ano, uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) aberta na Câmara de Campo Bom aprovou relatório que responsabilizou a empresa fornecedora de oxigênio, funcionários do hospital e a terceirizada que prestava serviços de manutenção à casa de saúde pelo caso.
A Polícia Civil indiciou seis funcionários do Hospital Lauro Réus e dois da empresa Air Liquide por homicídio culposo. Segundo a investigação, concluída em junho de 2021, as mortes foram causadas pela falha na suplementação de oxigênio registrada naquela manhã. Foi este inquérito que deu origem à denúncia apresentada pelo MP-RS.
Um segundo inquérito apontou que outras 15 pessoas também internadas no hospital faleceram nos dias seguintes e que a falha poderia ter causado os óbitos. No entanto, não houve indiciamentos nessa investigação.
Em março de 2022, o Ministério Público ingressou com uma ação civil pública contra a mantenedora do Hospital Lauro Réus e a empresa Air Liquide. A promotoria pediu a indisponibilidade e o bloqueio dos bens dos réus a fim de garantir eventuais indenizações a familiares dos seis pacientes mortos.