Há 12 anos o mundo assistiu a cenas de um horror indescritível, o incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, que causou a morte de 242 pessoas e ferimentos em 636. A partir da maior tragédia da história gaúcha — e uma das piores já registradas no Brasil —, surgiram várias entidades dedicadas a transformar o luto em luta pela punição aos culpados, das quais as mais conhecidas são a Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) e o Coletivo Kiss: Que Não se Repita. Mais de uma década depois daquele fatídico 27 de janeiro de 2013, essas organizações transmutam o sofrimento em memória coletiva.
O prédio onde funcionava a casa noturna foi demolido para dar lugar a um memorial. É um passo decisivo para a purgação da dor coletiva, mas não o último. Assim que o memorial surgir, as entidades de familiares de vítimas e os sobreviventes retomarão a pressão pela condenação definitiva dos quatro responsabilizados pela tragédia. Eles estão presos desde outubro de 2024, quando o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), reverteu a anulação do júri e validou a decisão dos jurados, levando os réus a voltarem a cumprir suas penas.
Para recordar: em dezembro de 2021, um julgamento condenou os empresários Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann (donos da Kiss) e também Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão (integrantes da banda que lançou o artefato pirotécnico que causou o incêndio, durante um show). Eles pegaram penas que variam de 18 e 22 anos. Só que ficaram livres em agosto de 2022, quando o Tribunal de Justiça do RS anulou o júri, com base em supostas irregularidades processuais. Só voltaram à prisão após a decisão do STF, em outubro passado.
Agora a decisão de Toffoli precisa ser analisada por seus colegas de turma no STF. Os advogados dos réus alimentam esperança de que o júri volte a ser anulado. Já familiares de vítimas confiam que os condenados ficarão na cadeia, como diz Paulo Carvalho, diretor jurídico da AVTSM e pai de um rapaz morto no incêndio.
Não acreditamos que haverá mudança no veredito. A sensação, apesar da longa espera por justiça, é de que finalmente ela está sendo feita. Se iniciou com a condenação dos entes privados e esperamos que em breve também os agentes públicos sejam responsabilizados.
PAULO CARVALHO
Diretor jurídico da AVTSM
Carvalho se refere a uma petição feita pelos familiares à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), para responsabilizar funcionários públicos cuja omissão teria ajudado a ocasionar o incêndio da Kiss. No caso, bombeiros, fiscais da prefeitura e seus gestores. Em outubro, a comissão admitiu o caso. A presidenta da CIDH, Roberta Clarke, se referiu ao caso da boate santa-mariense como um em que se observa "que a Justiça é nula ou quase nula". Ela fez referência direta à demora nos julgamentos e ausência de autoridades públicas no banco dos réus.
Paulo Carvalho não tem dúvidas de que isso colocará o Estado brasileiro, o Brasil, como réu.
— Não ainda condenado, mas o país precisa se justificar perante um tribunal internacional. Os documentos do processo que enviamos à CIDH demonstram que o Estado brasileiro falhou por omissão. Que também havia o conhecimento de agentes públicos quanto as graves irregularidades — resume Carvalho, que tem peregrinado por essa causa.
O aprendizado involuntário com a dor também levou familiares e sobreviventes da Kiss a se unirem com entidades que batalham por justiça em relação a outras grandes tragédias. Em 2024, foi formada uma união de associações que atuam para que jamais sejam esquecidas as mortes em Brumadinho e Mariana (avalanches de lama tóxica em Minas Gerais), Maceió (afundamento de bairros pela escavação da Braskem) e Ninho do Urubu (incêndio num alojamento que matou atletas do Flamengo). Eles elaboram juntos projetos de Comunicação, Memória e Prevenção. Representantes de cada uma dessas tragédias têm participado de eventos nos aniversários dos desastres e também acompanham os processos na Justiça, numa romaria de viagens extenuantes, relata Carvalho.
Uma das bandeiras é a condenação dos responsáveis por homicídio doloso eventual (quando o réu sabia dos riscos e mesmo assim agiu, provocando uma tragédia). Em casos antigos, como o incêndio do edifício Joelma, em São Paulo (187 vítimas, em 1974), os responsáveis foram julgados por homicídio culposo (acidental).
Paulo Carvalho acrescenta que as entidades do Caso Kiss também defendem direitos de sobreviventes de incêndios, cujo número é muito maior do que o de mortos. Ele estima que no Brasil exista mais de 1 milhão de queimados em tragédias que poderiam ter sido evitadas. É uma devastação silenciosa e que precisa ser divulgada, para prevenção, conclui o dirigente da AVTSM.
Dos escombros começa a surgir memorial
A reportagem visitou, na semana passada, o local onde ficava a Kiss. Do prédio em forma de caixote onde funcionava a boate, derrubado em julho de 2024, só restam caliça e tijolos. No terreno, quase um quarteirão de área, dezenas de operários trabalham na conclusão das fundições, fazendo força sob um calor de mais de 35ºC. Nos tapumes que encobrem a obra, uma frase pintada em grafite sintetiza o espírito do momento entre os familiares de vítimas do incêndio: "Desfazer a ruína e construir a memória".
A prefeitura planeja concluir o memorial até abril. O gestor da obra, Jeferson Nunes, calcula que até o fim de janeiro será concluído o posicionamento das ferragens e o fechamento das caixarias, escoramentos e concretagens. Em fevereiro a construtora deve iniciar o levantamento das paredes em bloco de concreto, serviço que se estenderá até março.
O projeto prevê um jardim naturalista circular de flores e um auditório. Ao redor, haverá 242 pilares de madeira, cada um representando uma vítima da tragédia. A obra tem 383 metros quadrados de área total, com um único pavimento. Inclui sala de escritório, sala multiuso, auditório, banheiros masculino e feminino, acessos ao auditório, depósito, área técnica, varanda e jardim. A construção terá uma estrutura mista de concreto armado e de madeira laminada colada. O memorial está orçado em R$ 4,8 milhões. Desse total, R$ 4 milhões foram custeados pelo Ministério Público-RS (com verbas do Fundo para Reconstituição de Bens Lesados), sendo o restante uma contrapartida da prefeitura santa-mariense.