Paulo Antônio Pereira Pinto (*)
Na segunda-feira (12), completam-se 20 anos desde que entreguei à sua avó gaúcha seu “doce neto”, no Salgado Filho, aeroporto de Porto Alegre. Peço autorização a Iruan Ergui Wu – agora adulto e cujos dados de endereço atual não disponho – para lembrar que sua trajetória de permanência de três anos em Taiwan e seu retorno ao Rio Grande do Sul podem representar uma síntese entre o jeito asiático e a maneira brasileira de ser.
Assim como Iruan, tive uma avó gaúcha. Caso fosse eu quando guri retido no Exterior, minha “vó” Maria Oliveira Pereira, nascida em Cachoeira do Sul, teria feito por Zero Hora campanha igual à da Sra. Rosa Leocádia Ergui, “vó” de Iruan, para ter o neto de volta.
Aos cinco anos, órfão de mãe brasileira e pai taiwanês, Iruan, gaúcho, viu-se mudo em Taiwan, a partir de 2001, no meio de pessoas cuja língua não entendia. Seu drama, provocado pelo desejo de tios paternos de retê-lo na ilha de Formosa, em desafio à tutela concedida pela Justiça brasileira à avó materna em Canoas, foi acompanhado em toda sua dimensão humana pela imprensa brasileira.
Na condição de diretor do Escritório Comercial do Brasil em Taipé, cumpri o dever de prestar-lhe assistência consular e acompanhar seu caso no outro lado do mundo. Desde o primeiro momento, no entanto, senti-me envolvido emocionalmente com o sofrimento do menino, dedicando-lhe muito mais do que atenção burocrática, visitando-o regularmente e procurando manter ativa sua memória sobre a família brasileira e seu país de nascimento. Contei, ademais, com o apoio fundamental de uma “comissão interinstitucional” formada em Porto Alegre, integrada por pessoas advindas de diversas organizações governamentais e não governamentais, bem como jornalistas, que passaram a definir, com a autorização e apoio da família gaúcha, estratégias para a repatriação do guri.
Durante todo o acompanhamento do caso, entre 2001 e 2004, tive em mente que, no Brasil, em comparação com nações cuja história é carregada de fortes nacionalismos, costumamos receber bem pessoas de diferentes raças e aceitamos com naturalidade suas diversas culturas. Em outras sociedades, como a taiwanesa, existem expectativas de setores minoritários conservadores, que buscam preservar tradições, mesmo que isso signifique reter um menino de cinco anos, para que mais tarde venha a dar continuidade a seu clã. Em oposição, uma parcela maior e mais esclarecida entende que crianças têm direitos individuais que devem ser respeitados.
No processo de negociação para o retorno de Iruan, cabia-me, perante a sociedade brasileira, situar a retenção do menino no contexto do “jeito asiático”, enquanto explicava aos taiwaneses nossa visão do problema, à luz do “jeito brasileiro”. Em suma, era necessário fazer entender que, em qualquer negociação, seja cultural, política ou comercial com o “universo chinês”, ao qual Taiwan pertence, cumpre esperar que o processo de tomada de decisão da parte deles seja lento, truncado, cheio de atalhos ou prorrogações, passando por sucessivos consensos, até que se chegue a um acordo final.
Por ocasião de minhas numerosas visitas, Iruan, que não queria falar em português, recorreu à bola para comunicar o que sentia. Nos desenhos ou na hora de dar um chute no pátio da escola. A bola de futebol – esporte que não é amplamente praticado em Taiwan – foi, durante aqueles três anos, o elo cultural que ligava Iruan ao Brasil. De acordo com a psicóloga taiwanesa Nicole Lai-Fu, que analisou o caso, “o menino expressava com um círculo que, em seu subconsciente, estavam guardadas lembranças favoráveis do Brasil. Era uma declaração de saudades do país, de vontade de retornar para casa e rever o futebol”.
Agora adulto, faço votos para que Iruan, recuperado em sua identidade brasileira, não esqueça os hábitos e valores taiwaneses, que lhe foram ensinados por seus parentes orientais, que, apesar de o terem retido de forma não autorizada, o trataram com carinho e lhe transmitiram ensinamentos comunitários valiosos.
Que seja um cidadão capaz de representar a síntese entre o “jeito asiático” e a “maneira brasileira de ser”.
(*) Embaixador aposentado. Dirigiu o Escritório Econômico e Comercial do Brasil em Taipé, entre 1998 e 2006. Autor de “Iruan nas Reinações Asiáticas” (2004)