As inundações que varreram, neste início de setembro, o Vale do Taquari devem alterar a forma como comunidades e autoridades locais se relacionam com o meio ambiente da região. Isso é o que defende o promotor Sérgio Diefenbach, responsável pela Promotoria Regional do Meio Ambiente da Bacia Hidrográfica dos Rios Taquari e Antas.
Em entrevista a GZH, o promotor alerta para o risco de autoridades levarem adiante os projetos que estão em debate para redução das áreas de proteção permanente (APPs) na região. Diefenbach também defende que haja um movimento de reorganização das cidades em torno do Taquari, para reduzir os danos em eventuais episódios futuros.
De que forma a Promotoria Regional do Meio Ambiente avalia o que aconteceu nos últimos dias na região?
Inicialmente, a gente avalia com a mesma tristeza que as pessoas do Vale do Taquari têm presenciado, ajudando da forma que for possível. Então, o Ministério Público está ao lado dessas pessoas, prefeituras e instituições. Mas nós já estamos observando o Rio Taquari há muitos anos, e esses fenômenos passam por alguns aspectos que nós podemos analisar em conjunto, em toda a comunidade. O primeiro é o imponderável, que foi o absurdo das águas ao mesmo tempo, que gerou uma velocidade e um volume relativamente imprevisíveis. Por outro lado, nós temos regiões ribeirinhas muito sensíveis e que já, há muito tempo, vêm sendo observadas com uma necessidade, talvez, de uma maior proteção, de um afastamento, de realocação de algumas famílias, de redirecionamento desses núcleos habitacionais. E talvez esse momento sirva para nós pensarmos juntos o que pretendemos fazer nesta ligação entre as cidades e o Rio Taquari. São estas zonas que devem ser protegidas e muitas vezes são zonas que estão sendo ocupadas. Nós nunca podemos esquecer que, querendo ou não, são as nossas cidades que entram na área do rio, que não tem cérebro, o rio vem conforme a natureza lhe direciona. Então cabe a nós, humanos, nos reorganizarmos em torno deste rio. A preocupação da promotoria regional é não somente com as matas ciliares, que são essenciais na proteção do rio, mas também com essa ligação das cidades com o seu rio. É um momento em que alguns municípios já vêm discutindo o uso da área de preservação permanente, alguns municípios pretendem a redução dessa área de preservação permanente. Então perceba que esse fenômeno trágico que atinge a todos nós, talvez ele seja o início ou o meio de uma grande discussão sobre a nossa convivência com o Rio Taquari.
É o caso de os municípios reduzirem as suas áreas de proteção permanente? E como essas áreas protegem as cidades?
Me parece que é necessária a revisão de todas as áreas de risco que existiam no Vale do Taquari e que passam a existir diferentemente a partir de agora. Então tem que se aguardar o rio baixar por completo e fazer uma nova análise de todo o rio, porque em alguns espaços pode ter havido perda muito grande de terreno, perda de taludes, perda de segurança nessas zonas de habitação. Então, uma zona de risco passa a ser alterada em razão da alteração do rio. E cada recurso hídrico, seja um riacho, um arroio, um pequeno rio ou um médio rio, como o Taquari, tem a sua zona de preservação permanente. O que significa isso? É uma área onde nós deveríamos fazer a mínima intervenção possível, a mínima ocupação humana possível. É claro que nós já viemos historicamente com ocupações consolidadas e com elas nós temos que conviver. No entanto, o que se precisa discutir? Reduzir essa área de proteção? Isso não parece que combina muito com o momento que nós estamos vivenciando. Aumentar também não é possível, mas preservar a área que já existe é uma necessidade da nossa coletividade. Então eu vou convidar muito as comunidades, os prefeitos, as câmaras de vereadores para analisarmos quais são as zonas mais sensíveis e como nós podemos dar dignidade a essas pessoas. Talvez seja o momento de nós não mais nos conformarmos com o fato de uma ou duas vezes por ano retirarmos duas mil pessoas, em um desgaste psicológico, emocional e às vezes até com perda de vidas. Acredito que esse é o grande debate que se inicia a partir desse episódio.
Houve uma mudança em 2021 no Código Florestal brasileiro que abriu as portas para municípios reduzirem as suas áreas de proteção permanente. O Ministério Público tem instrumentos para frear essas reduções?
Sim, há instrumentos, sem dúvida, para que a gente possa fazer a análise correta da constitucionalidade ou legalidade de uma lei municipal que faça uma redução muito violadora do meio ambiente. Essa alteração no Código Florestal agora permite, em linhas muito resumidas, que cada município consiga modificar o tamanho da área de proteção permanente nas suas áreas urbanas consolidadas. Os municípios que experimentarem fazer redução de área de preservação sem todos os cuidados obrigarão o Ministério Público a usar os instrumentos que estiverem ao nosso alcance em defesa do meio ambiente, para frear esta modificação. Aqueles outros que estiverem adequadamente estudando, analisando com cientificidade e verificando em valores proporcionais a redução, nós vamos respeitar o poder legislativo e executivo. O Ministério Público, em outras palavras, está olhando esses movimentos de cada município. O Rio Taquari é muito delicado nesse ponto, e esse episódio das inundações nos remete a aumentarmos a lupa sobre esses movimentos de redução de áreas de proteção.
Neste episódio, vimos o rio invadindo não apenas as áreas de tradicionais enchentes, mas também áreas nunca antes atingidas, muito distantes de onde as comunidades estavam acostumadas. As cidades têm que fazer quê, além de cuidar das matas ciliares, das comunidades ribeirinhas?
Eu costumo dizer, para quem conhece aqui a cidade de Lajeado: temos um parque municipal chamado Parque dos Dick, aqui no centro da cidade, e esse parque se transforma em um enorme pulmão de respiração e lazer para a população. Mas, em outras palavras, esse parque só existe porque pega enchente. Porque, se não pegasse a enchente ali, certamente estaria dominado de prédios e construções normais, com o avanço natural de uma cidade pujante como a nossa. Então, é importante e é possível observar locais estratégicos de grandes alagamentos, de recorrência de alagamentos, e o poder público tem poderes para fazer desapropriação. Assim como se desapropria uma área para fazer uma estrada, é possível desapropriar para a proteção ambiental, para transformar em parque. É claro que isso tudo tem um custo muito alto, social e econômico. E é por isso que é necessário o planejamento, o olhar atento de cada cidade. Então, o que eu dizia é que, às vezes, tem áreas que já eram ocupadas, mas mal ocupadas, agora a natureza ocupou o seu espaço e talvez seja o momento de nós aproveitarmos isso e deixarmos aquele espaço para uso público, coletivo e natural, e transferirmos habitações e outros prédios para outras áreas. Veja bem, eu não estou me referindo a todas as áreas alagadiças, senão municípios como Lajeado, Arroio do Meio, Roca Sales teriam que se extinguir, pois tem áreas que nós já invadimos e estaremos ali pelo resto das nossas vidas. Mas em outras áreas sensíveis ainda é possível fazer recuperação ambiental e fazer o reassentamento das pessoas.