Quase três anos depois do incêndio da boate Kiss, sobreviventes e familiares das vítimas desabafaram na Câmara dos Deputados. Questionaram a morosidade do caso nos tribunais, a atuação do Ministério Público (MP) e a dificuldade no acesso aos medicamentos. E reforçaram o coro por justiça.
Realizada na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, a audiência pública marcou os mil dias do desastre que ceifou 242 vidas em janeiro de 2013, em Santa Maria. Trajados com camisetas com imagens dos filhos perdidos, pais e mães espalharam fotos das vítimas em um plenário que recebeu momentos de consternação e de cobranças veementes.
- Choca saber que pais ainda estão buscando justiça pelos seus filhos - destacou Gustavo Cadore, sobrevivente do incêndio.
Na audiência, sobraram reclamações sobre as falhas no repasse de remédios, viabilizado graças a uma parceria com uma rede de farmácias. Aline Henriques Maia sobreviveu à tragédia, porém ficou com problemas pulmonares e necessita de nove medicamentos, que não recebe do poder público.
- Nunca consegui nada da medicação. Estou afastada do emprego e meu salário vai quase todo para a farmácia.
A tramitação dos processos também sofreu questionamentos. Até o momento, ocorreram dois julgamentos. Na Justiça Militar, dois bombeiros foram condenados, enquanto na Justiça Comum outro foi sentenciado por fraude processual.
Já o processo criminal, em que são réus os sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e dois membros da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, não foi concluído.
- Passados mil dias, não temos a justiça para a paz dos familiares. Não queremos nada além da verdade plena na apuração dessa tragédia - protestou o diretor jurídico da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia, Paulo Carvalho.
A atuação do MP recebeu duras críticas, em especial sobre a denúncia por calúnia contra familiares das vítimas, motivada por cartazes espalhados por Santa Maria que insinuam que o promotor Ricardo Lozza e o MP foram omissos no caso.
Subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Fabiano Dallazen defendeu o trabalho do MP, garantiu que o órgão atua para dar celeridade aos processos e evitou entrar no mérito da ação por calúnia.
- Não posso dar posição sobre questão pessoal. O promotor se sentiu ofendido e fez uso de um direito seu - comentou.
Ao final do encontro, o presidente da comissão de Direitos Humanos, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), anunciou a criação de um grupo de parlamentares para fiscalizar o andamento do caso.
- Vamos intensificar iniciativas para cobrar agilidades nos processos e evitar a impunidade. Chega deste jogo de empurra entre as autoridades.
A LEI KISS
-Em fevereiro de 2013, foi criada uma comissão externa na Câmara dos Deputados.
-O colegiado redigiu uma proposta de atualização das normas de segurança, prevenção e combate a incêndios em casas noturnas, bares, cinemas, teatros, prédios públicos e outros espaços de concentração de pessoas.
-O texto da comissão só foi aprovado na Câmara em abril de 2014 e seguiu para o Senado.
-Intitulada como Lei Kiss, passou no Senado em setembro deste ano. Como foram feitas mudanças no texto, o projeto voltou à Câmara, que poderá modificá-lo outra vez.
-Na Câmara, o projeto está em três comissões, sem previsão de ser votado em plenário.
-Depois da segunda aprovação na Câmara, a Lei Kiss precisa ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff, que pode vetar parte do texto.
O QUE FICOU NO PROJETO
-A lei se aplicará a estabelecimentos e prédios públicos com ocupação igual ou superior a cem pessoas. Também atinge locais com lotação inferior, mas que concentram idosos, crianças e pessoas com dificuldade de locomoção, e que contenham grande quantidade de material inflamável.
Plano de prevenção de incêndio
Os alvarás são competência dos municípios. As liberações não podem ser dadas sem o plano de prevenção de incêndio aprovado pelo Corpo de Bombeiros.
Comandas proibidas
Proíbe o uso de comandas para controle do consumo de produtos em boates, discotecas e danceterias.
Improbidade
Como o alvará é responsabilidade dos municípios, o prefeito que deixar de observar a lei cometerá crime de improbidade administrativa, que pode levar à cassação do mandato. Bombeiros também poderão responder por improbidade.
Detenção e multa
Quem permite a entrada de mais pessoas do que o autorizado fica sujeito a pena de detenção de seis meses a dois anos, além de multa.
O QUE MUDOU NO SENADO
ABNT sem força de lei
A ideia na Câmara era que a concessão de alvará deveria seguir as especificações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) ou de outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade (Conmetro). O Senado retirou essa exigência. Os alvarás serão concedidos conforme regras das autoridades competentes em cada região. ABNT e Conmetro serão utilizadas quando não houver regulamentação.
Convênios entre municípios e bombeiros
Foram barrados convênios em cidades sem unidade de bombeiros militares. Prefeituras desses municípios teriam equipes treinadas em prevenção e combate a incêndios, que realizariam fiscalizações periódicas e as vistorias para aprovar obras.
Autorização especial
O Senado retirou a prerrogativa para que prefeitos concedam autorização especial para realização de eventos que integram patrimônio cultural da região.