Nos seus poucos nove anos de vida, um aluno do 4º ano da Escola Municipal Adelmo Simas Genro já havia percebido que as pessoas são diferentes umas das outras: baixas, altas, gordas, magras, brancas, negras. O que ele está aprendendo agora é que todos devem ser acolhidos.
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No futuro, ele terá consciência que, na comunidade onde mora, a Nova Santa Marta, as diferenças vão muito além da aparência. Elas estão inseridas em um contexto social que tem origem na formação e no histórico do bairro: uma ocupação em dezembro de 1991, que hoje tem mais de 26 mil moradores e é uma das maiores ocupações urbanas da América Latina, marcada pelo abandono por parte do poder público.
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O pequeno aluno vai descobrir que o acolhimento necessário às famílias - infraestrutura, projetos de inclusão e assistência social -, por muito tempo, inexistiu e continua sendo insuficiente no local. E que foi a união desses fatores que tornou o bairro um dos mais violentos da cidade, onde ocorreram 10 dos 50 assassinatos do ano passado em Santa Maria.
É para que esse e os outros cerca de 560 alunos não sejam captados pela criminalidade e se tornem adultos capazes de enfrentar a difícil realidade em que vivem que a escola Adelmo Simas Genro trabalha todos os dias. Assim como as outras duas que ficam na região - a Escola Estadual Santa Marta e a Escola Marista Santa Marta. A ideia é que outros agentes se unam a essa causa.
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Recentemente, o medo da violência venceu a coragem da comunidade escolar da Adelmo Simas Genro, que resolveu fechar as portas da instituição por três dias (de segunda à última quarta-feira). A unidade Estratégia de Saúde da Família (ESF) Alto da Boa Vista, que fica nos fundos do prédio da escola, também interrompeu as atividades. E por tempo indeterminado. A situação-limite desencadeou ações emergenciais por parte dos órgãos de segurança pública e prefeitura.
Sentindo-se mais segura, a escola reabriu na última quinta-feira. Mas a presença das viaturas do Batalhão de Operações Especiais (BOE) da Brigada Militar (BM) e dos guardas municipais não convenceu a todos. Uma professora deixou a escola porque sentia-se ameaçada. Temerosos, pelo menos cinco pais transferiram os filhos para outra escola do bairro. Alguns ainda tentam vagas. De forma geral, as pessoas acham que as medidas de segurança são temporárias, e que o problema está na impunidade dos responsáveis.
- Ficamos sentidos porque gostamos da escola, que tem muita importância para nós, mas a outra escola é toda fechada e tem segurança particular - argumentou o jardineiro de 72 anos que levou a neta de sete anos para se despedir das antigas professoras na Adelmo Simas Genro na manhã de quinta.
Mesmo ameaçada, comunidade silencia
Esta não é a primeira vez que a violência na Nova Santa Marta é tema de discussões por parte do poder público. Em 2014, depois de uma série de reportagens do "Diário", órgãos de segurança sentaram para conversar. Foram debatidas necessidades e propostas ações, mas a verdade é que pouco ou nada mudou de lá para cá na vida de quem mora no bairro.
Os moradores continuam silenciados pelo medo. E são frequentes os tiroteios na região. Jovens e adolescentes andam pelas ruas armados com revólveres e facões sem a mínima discrição. Eles ameaçam as pessoas e buscam o enfrentamento. O pano de fundo é o mesmo de 2014 e de anos atrás: o tráfico de drogas.
- Os traficantes vão à escola para conseguir novos consumidores, para namorar as alunas e atormentar os professores que querem que eles estudem. São gangues que atuam na região e que mudam muito de integrantes - diz o major Paulo Antônio Flores de Oliveira, comandante interino do 1º Regimento de Polícia Montada (1º RPMon) da BM.
Uma dona de casa que mora na Vila Alto da Boa Vista, que integra o bairro, conta que é comum ouvir tiros nas redondezas:
- Um dia desses, uma mulher teve que sair da casa e gritar que tinha criança no quarto para pararem de atirar na casa. Tu sai (na rua), mas com o coração na mão porque bala perdida não escolhe alvo.
Ela disse que ouviu as pessoas comentando que o grupo de adolescentes foi para o pátio em frente ao prédio da Escola Adelmo Simas Genro e ficou "riscando o chão com facões".
- Eles jogam pedras (no prédio), ameaçam invadir (as salas de aula), pegar as professoras, matar os guardas, tirar as armas deles - conta a moradora.
Ela tem filhos adolescentes e teme pelo futuro deles:
- A menina não queria mais voltar para a escola. O guri, tento cuidar as amizades dele, mas é difícil. Me preocupo bastante, porque do jeito que as coisas estão aqui...
Um funcionário da escola relata que já foi ameaçado:
- Disseram que eu iria amanhecer com a boca cheia de formigas. Um dia vi esse grupo com facas e facões, e, no meio deles, uma criança que deveria ter entre quatro e cinco anos com uma faquinha na mão. Fiquei chocado.
Grupos já foram identificados
O setor de inteligência da Brigada Militar e a Polícia Civil já identificaram os integrantes de dois grupos rivais responsáveis pelo tiroteio na última segunda-feira perto da Escola Municipal Adelmo Simas Genro.
- São adolescentes cada vez mais jovens, a partir dos 13 anos, que querem ostentar poder e uma condição social que eles não têm em casa, que a família não pode dar - diz o major Paulo Antônio Flores de Oliveira, comandante interino do 1º Regimento de Polícia Montada (1ºRPMon) da BM.
- A Nova Santa Marta já era uma área de violência mais acentuada, e isso acabou acontecendo também com os adolescentes. Identificamos 15 que fazem parte de grupos rivais. Foram instaurados procedimentos que serão encaminhados ao Judiciário para aplicação de medidas socioeducativas. O pano de fundo é o tráfico, que é uma questão social - disse a titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), Carla Dolores Castro de Almeida.
Além de atos infracionais como lesões corporais, que envolve a rivalidade entre dois grupos, os adolescentes responderão por porte de arma, pichação e por ameaças, devido a essa postura de enfrentamento deles em relação aos professores e alunos da escola.
Além de manter policiamento 24 horas no bairro por tempo indeterminado, a BM quer "ocupar" o local por meio da aproximação com a comunidade. A cada semana, serão feitas avaliações.
Diagnóstico: faltam serviços
A assistente social Caroline Capeleto Massia, que atua no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) Oeste, localizado em frente à escola Adelmo Simas Genro há menos de três meses, não precisou de muito tempo no local para fazer um diagnóstico:
- A violência é reflexo dessa carência que existe na região, de mais atendimento em saúde, mais atenção às famílias, do social realmente. A Região Oeste é muito extensa, precisaríamos de força-tarefa com vários serviços.
O convênio que mantinha o Cras Oeste terminou em dezembro. Para não fechar as portas até que uma nova entidade fosse selecionada, profissionais de outros serviços foram cedidos para o centro. Desde então, o atendimento é feito por quatro pessoas - um assistente social, um psicólogo e dois servidores administrativos -, quando a determinação do Ministério de Desenvolvimento Social é de oito profissionais.
Segundo a secretária de Desenvolvimento Social, Margarida Mayer, está em andamento um chamamento público para selecionar a entidade que prestará o serviço no local. O resultado deve sair até o final do mês.
Ainda conforme a secretária, um Cras é o suficiente para atender as 5 mil famílias identificadas pela prefeitura em situação de vulnerabilidade na Região Oeste, que inclui a Nova Santa Marta:
- É preciso uma união de esforços de diversos órgãos para resolver as questões da Nova Santa Marta. Esse é o momento para isso. Depois, terá de ter uma estratégia coletiva para instituir uma rede de atenção, cuidado e desenvolvimento social na comunidade. O poder público deve ser um agente nesse processo.
A história se repete
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