Nascido em Bogotá, na Colômbia, Antumi Toasijé chegou a Madrid aos dois anos de idade e, desde então, dedicou a sua vida a estudar e combater ao racismo. Em 2020, o historiador de 53 anos foi nomeado pelo governo espanhol para chefiar o Conselho para Eliminação da Discriminação Racial na Espanha (Cedre), um órgão consultivo do Estado para auxiliar nas políticas públicas do tema. Segundo o ativista, o preconceito racial no mundo foi "inventado" pelo Império Espanhol, no século XVI.
— A Espanha é uma nação construída historicamente com base na antiafricanidade. Aqui há uma história muito forte contra tudo o que é africano desde os tempos do antigo Império Espanhol. Eu digo que a Espanha é provavelmente a nação que inventou o racismo. O racismo estruturado como o conhecemos em um sistema de castas com seres superiores, os brancos, e os inferiores, os de pele mais escura. É claramente uma invenção que ocorreu na Península Ibérica e, particularmente, na Espanha — disse o pesquisador, em entrevista exclusiva a GZH.
Na última terça-feira (13), Toasijé recebeu a reportagem na sede do Ministério da Igualdade da Espanha, na região central de Madrid, e em uma entrevista de 30 minutos, comentou os atos racistas sofridos repetidamente por Vinicius Junior na última temporada, analisou as raízes do racismo na Espanha e projetou os desafios do governo e da sociedade espanhola para combater a discriminação racial.
Confira a íntegra da entrevista exclusiva com o presidente do Conselho para Eliminação da Discriminação Racial na Espanha (Cedre), Antumi Toasijé:
O senhor é colombiano e chefia um órgão importante do governo espanhol de combate ao racismo no país. Como surgiu a sua relação com a Espanha e com o ativismo negro?
Nasci na Colômbia, mas cheguei à Espanha com dois anos de idade. Cresci aqui, vivi aqui toda a minha infância, toda a minha juventude e minha vida. Quando me perguntam o que sou, digo que me considero um africano de nacionalidade espanhola. E estou aqui trabalhando em várias áreas. Sou historiador e professor de história em uma universidade aqui em Madri. Desde que ingressei na universidade, comecei com o ativismo. As primeiras fases do meu ativismo foram um ativismo mais acadêmico, mais ligado à pesquisa, mas depois comecei a participar de movimentos pan-africanos e antirracistas. E em 2020, fui nomeado presidente do Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial na Espanha (Cedre), que é um órgão consultivo e multissetorial vinculado ao Ministério da Igualdade. É um órgão colegiado que tem a participação de vários ministérios, administrações públicas, sindicatos, empresários e várias ONGs. E a nossa principal tarefa é a luta contra o racismo aqui na Espanha.
Quais são as principais atividades do Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial na Espanha na luta contra o racismo?
O Cedre tem três funções principais. Uma delas é coordenar o único serviço oficial que existe para atender vítimas de racismo na Espanha. É um número de telefone para o qual as pessoas que são vítimas de racismo podem ligar e serem atendidas e aconselhadas sobre o que pode ser feito em casa caso. Outra das nossas funções é a elaboração de estudos e relatórios sobre a situação do racismo na Espanha. Fizemos um estudo que é o único que existe no país sobre a percepção das próprias vítimas em potencial sobre a situação de racismo. Existem outros estudos que perguntam à população em geral sobre racismo, mas o nosso pergunta às potenciais vítimas como elas percebem a situação do país em termos de racismo. O último desses estudos revela que, nos últimos anos, houve um crescimento bastante significativo do racismo na Espanha. E a outra das funções do Cedre, talvez a mais conhecida, é a de elaborar recomendações ao poder público sobre questões específicas, concretas e obviamente relacionadas ao racismo, à discriminação racial e à discriminação étnica. Essas recomendações são divulgadas não apenas aos órgãos oficiais mas também à sociedade civil. Com base nestas recomendações, esperamos que haja mudanças nas políticas públicas e também na nossa legislação no que diz respeito ao combate ao racismo.
Que recomendações o Conselho enviou ao governo para combater o racismo na Espanha?
O Cedre tem apoiado fortemente a aprovação de uma lei mais direta contra a discriminação racial. Na Espanha, embora existam leis que abordem diferentes questões relacionadas ao racismo, elas não têm a intensidade necessária para abordar o tema. E há muitos aspectos do racismo que não são abordados pela legislação. Essa é uma das funções que tem relação direta ao caso do Vinicius Junior em particular. Na Espanha, não há uma lei específica sobre racismo. Ele está vinculado a uma lei muito abrangente que fala em "crimes de ódio". Alguns dos autores dos insultos contra o Vinicius foram processados por esta via de crimes de ódio, e o Ministério Público está investigando desta forma. Nós defendemos a aprovação de uma lei que aborde o racismo de forma mais direta.
E com base nas leis atuais, como é a punição ao racismo na Espanha?
Quando digo que as leis são deficientes na Espanha, não quero dizer não haja leis para punir o racismo, mas não há instrumentos suficientes para viabilizar a sua aplicação. Isso é um problema, e eu digo que o esporte, principalmente o futebol, é uma área onde essa situação saiu completamente do controle. Por isso defendemos que exista uma lei integral contra o racismo. Isto não pode ser uma questão de governo e sim uma questão de interesse nacional, para que a gente construa uma sociedade onde todo mundo tenha os mesmos direitos.
"A Espanha inventou o racismo", diz presidente de Conselho para Eliminação da Discriminação Racial do paísPor que no futebol a situação saiu do controle?
A perspectiva até seria boa no futebol se ao menos as leis fossem rigorosamente aplicadas, mas enquanto houver a ideia, por parte de juízes e dos dirigentes responsáveis pelas instituições esportivas de que certos fatos só são graves quando têm projeção internacional ou quando outro país se envolve, a situação não vai melhorar. Aliás, foi muito importante para nós a manifestação contundente do presidente (do Brasil) Lula contra o racismo sofrido pelo Vinicius Junior. Mas, enquanto não houver conscientização por parte dos juízes, dos promotores e das autoridades esportivas, a situação não vai melhorar. Então, para que melhore, deve haver uma conscientização e uma aplicação mais rigorosa das leis.
Que sugestões de medidas práticas o senhor tem para melhorar o combate ao racismo no futebol?
Na minha opinião, se há um insulto racial em um estádio, a partida deve ser interrompida imediatamente. E até adiada, se necessário. Há que se expulsar do estádio as pessoas que forem identificadas. E se elas não forem identificadas, então aquele jogo não deve ser realizado. Ou então que seja realizado com portões fechados. As punições têm que ser duras o suficiente. Não podemos continuar com o argumento de que, como não é possível identificar os responsáveis, o clube não pode ser punido. Tem sim que se punir os clubes porque senão, não há como atacar essa questão.
Além desta fragilidade na legislação, não te parece que na Espanha ainda há pouco debate sobre o racismo.
Sem dúvida. A Espanha não debate o racismo. Sempre houve aqui um negacionismo em relação a este tema. Os espanhóis nunca quiseram debater esse assunto e nem reconhecer diretamente que há racismo aqui. Sempre foram usados aqui todos os tipos de subterfúgios para se evitar falar sobre racismo. Se fala de xenofobia, de aporofobia (aversão a pobres) e de todo tipo de coisa, mas pouco de racismo. Mas na realidade o racismo é estrutural na sociedade espanhola. Mas não é só aqui. É assim no mundo todo.
Por que há este negacionismo na Espanha a respeito de racismo?
Existe um negacionismo muito evidente. O racismo tem sido um tema proibido e silenciado na Espanha. Há um setor da sociedade que não reconhece que existe racismo e outro setor que o reconhece, mas que silencia. Há um setor da sociedade, com mais formação ou conhecimento sobre o tema do racismo, mas que sempre evitar abordá-lo. Por exemplo, quando há um caso evidente de racismo que ganha publicidade nos Estados Unidos, há uma certa mobilização na Espanha não só por parte da população afro, mas também de boa parte da população branca. Mas essa mobilização existe quando o caso ocorre fora da Espanha. Quando as coisas acontecem aqui, sempre se busca uma outra justificativa para o fato que não questão racial. É isso que chamamos de negacionismo.
Como historiador, com base na sua pesquisa, por que o senhor acha que o racismo na Espanha é tratado desta forma?
A Espanha é uma nação construída historicamente com base na antiafricanidade. Aqui há uma história muito forte contra tudo o que é africano e há uma história muito eurocêntrica, muito branca. A Espanha, juntamente com Portugal, tem um papel muito importante na construção do racismo deste os tempos do antigo império espanhol. Eu digo que a Espanha é provavelmente a nação que inventou o racismo como o conhecemos. Houve outras formas de discriminação semelhantes em outras sociedades, mas o racismo estruturado como o conhecemos em um sistema de castas com seres superiores, os brancos, e os inferiores, os de pele mais escura. é claramente uma invenção que ocorreu na Península Ibérica e, particularmente, na Espanha. Ela participou desta criação através de um aparato ideológico conhecido como "purificação do sangue". Então a Espanha estabeleceu a ideia do sangue limpo, a ideia de que certos grupos humanos têm sangue sujo. Essa ideia foi estabelecida a partir do século XV, e essa percepção foi se expandindo. Era uma percepção que ia na contramão das ideias que existiam naquela época. No mundo cristão daquela época não se pensava assim, mas a Espanha começou a criar essa ideia, e esta ideia foi levada às Américas e ao resto do mundo. Então, a Espanha tem um papel central na criação do racismo.
Por que o senhor acha que a Espanha "criou" o racismo?
Os espanhóis naquela época tinham um trauma por terem passado 800 anos em combate constante com as forças muçulmanas na Península Ibérica. Naquela época, se tinha uma ideia de que os povos cristãos eram menos civilizados do que os povos mediterrâneos que vieram do norte da África. E, quando os espanhóis derrotaram esses povos muçulmanos, criou-se um discurso triunfalista, de superioridade. Então, os espanhóis levaram essa ideia de superioridade para o continente americano, criaram hierarquias raciais, e essas hierarquias raciais são uma grande parte da estrutura racista do mundo. Isso é um racismo anti-africano, uma ideia totalmente distorcida, sem nenhuma base real, que acreditava na existência de povos amaldiçoados por Deus e de povos beneficiados por Deus. A ideia da "pureza do sangue". No final das contas, isso se traduziu em uma série de dispositivos legais, leis e normas que impediam as pessoas não brancas e não cristãs de acessarem as posições mais respeitáveis da sociedade. E isso já era praticado na Península Ibérica antes mesmo de ocorrer a colonização do continente americano.
Então o senhor acredita que o passado colonizador da Espanha contribui para que haja esse negacionismo sobre racismo entre os espanhóis?
O racismo está muito ligado ao colonialismo e à escravidão. E a Espanha sempre negou que o seu colonialismo fosse semelhante ao colonialismo anglo-saxão. Assim, os espanhóis sempre tentaram disfarçar a sua participação colonial e até negar que houve que houve participação da Espanha na invasão colonial do continente africano, apenas pelo fato de as colônias espanholas na África serem menores em extensão territorial às da França ou da Grã-Bretanha. Mas a Espanha tinha suas colônias no continente africano e ali ela exercia o racismo como também outras nações. E a Espanha negou isso sistematicamente. Isso é algo particularmente notório na academia e nas universidades. A Espanha era uma das principais potências escravistas do mundo, e isso deve ser conhecido, discutido e debatido. A Europa como um todo tem uma grande experiência sobre o que é o racismo. E a Europa tem consciência do perigo que o racismo representa. porque na Segunda Guerra Mundial os europeus tiveram um problema muito grave dentro do seu território. Mas quando o racismo operava nas colônias, ninguém na Europa se importava, pouquíssimas pessoas denunciavam. Existe uma certa hipocrisia no discurso, no sentido de que, as instituições europeias consideram o racismo um assunto sério, mas desde que ele ocorra dentro das suas fronteiras. Mas quando ocorre fora das fronteiras europeias, aí tudo bem. Inclusive, por exemplo, quando a Europa recebe refugiados, dependendo da sua procedência, a porta lhes é aberta ou não.
Na sua opinião, a Espanha hoje é racista? E o futebol espanhol é racista?
Então, não existe meio termo quando o assunto é racismo. Se o racismo não for atacado, ele vai crescer sempre. Não há uma opção intermediária. Ou você é racista ou você é antirracista. E o que significa ser antirracista? Significa enfrentar ativamente o racismo e ser ativamente antirracista. Quando se tem posições intermediárias, tudo o que se faz é beneficiar os racistas. E isso está acontecendo na Espanha com aquelas pessoas que são pouco ativas na luta contra o racismo, porque elas permitem que o racismo cresça.