Seja por desinteresse da população ou pela falta de pessoas qualificadas, muitas profissões têm enfrentado escassez de mão de obra. Funções que envolvem atividades mais artesanais, aprendidas de pai para filho – como as de sapateiro e costureira –, ou que se desenvolvem em ambientes menos atrativos, como as de tanatopraxista ou desentupidor de esgotos, podem não brilhar aos olhos das novas gerações, mas seguem essenciais para a sociedade. Para dar conta da demanda, cada área tem se reinventado como pode.
Em 73 anos de trabalho na área de calçados, Vitor Apolinário Barth, de 86 anos, viu sua profissão se transformar. Natural de Novo Hamburgo, ele iniciou sua carreira na tradicional fábrica de calçados Kildare, em janeiro de 1953, onde o pai já trabalhava.
O trabalho era muito pouco automatizado: quase não havia máquinas, e o então adolescente fazia os cortes dos sapatos à mão. Aos 18 anos, mudou-se para Porto Alegre em busca de uma vida melhor. Em 1969, quando estava empregado na prefeitura, sentiu que era o momento de abrir seu negócio e voltar a ser sapateiro.
— Na prefeitura, eu não fazia nada e não conseguia não fazer nada. Quando botei a sapataria aqui, trabalhava 20 horas por dia. Aí fiquei feliz. Agora estou meio atrapalhado, porque estou trabalhando só um pouco — relata o idoso.
Atualmente, a Sapataria Modelo, no bairro Menino Deus, é administrada pela sobrinha do seu Vitor, enquanto o trabalho mais pesado fica por conta do neto, que também é geógrafo. Ele encontrou no negócio familiar não apenas uma fonte de renda interessante, mas também uma conexão com a trajetória de toda a família.
— Eu tinha uns 18, 19 anos e queria ganhar dinheiro já, né? Então, comecei a trabalhar aqui. Era uma coisa muito fácil de aprender, porque o vô, o pai, a vó trabalhavam com isso. Foi uma boa renda, também, durante a faculdade — conta Hiago Godoi Barth, 27 anos.
Hoje, Hiago atua como geógrafo autônomo e também toca o negócio da família. Seu pai tem uma sapataria na Praia do Rosa, e o tio é dono de uma fábrica de calçados em Novo Hamburgo.
Sapateiro só morre, não nasce. O preço aumenta porque não tem quem trabalhe.
HIAGO GODOI BARTH
Geógrafo
Além do que aprenderam com os mais velhos, as novas gerações trouxeram novidades: investiram na presença online – o que fez com que a Sapataria Modelo se tornasse uma das mais bem avaliadas de Porto Alegre no Google – e ampliaram os serviços oferecidos. O local, por exemplo, é um dos poucos da cidade que conserta malas.
— A sapataria que não fez isso que nós fizemos fechou, porque só aquele conserto normal de sapato, às vezes, não vale a pena. Tu compra um sapato na internet por R$ 150, e o nosso solado custa R$ 150 — explica seu Vitor, que acredita que ainda vale a pena manter um negócio como o dele em bairros mais nobres, onde os moradores investem em produtos de maior qualidade, que compensam o conserto.
No dia a dia, quem trabalha lá é da família ou muito amigo. Já quando o serviço aumenta, não é fácil achar mão de obra.
— Sapateiro só morre, não nasce. O preço aumenta porque não tem quem trabalhe. Quando chega uma época de mais movimento aqui na sapataria é uma briga no WhatsApp com os sapateiros autônomos para ver quem vem trabalhar e quanto quer. Leva umas duas semanas pra conseguir alguém para vir trabalhar por comissão — estima Hiago.
De aprendiz a mestre
Carlos Eduardo Alves de Fraga, 45 anos, tinha uma empresa de motoboys quando passou a prestar serviços para a Funerária São Pedro, no bairro Azenha. Entre uma entrega e outra, foi conhecendo os bastidores e se interessando pelos ofícios de um estabelecimento funerário. Há 13 anos, ao descobrir que seria pai, decidiu pedir uma chance: mesmo sem nenhuma formação, assumiu o posto de auxiliar de tanatopraxia.
Os empreendedores estão acelerando muito, e a qualificação não está acompanhando, embora instituições façam o que podem. O que falta é uma estratégia, talvez governamental, um pouco mais sistêmica.
PAULO BRUSCATO
Gerente regional Metropolitano do Sebrae RS
O tanatopraxista é o profissional responsável por preparar o corpo após a morte. As habilidades exigidas são diversas – começa com a substituição do sangue por um fluido artificial, passa pela retirada dos líquidos do organismo e termina com cuidados estéticos, como a lavagem do cabelo, a pintura das unhas e a maquiagem do falecido.
O objetivo é nobre: permitir que os entes queridos possam dar o último adeus da forma mais digna e serena possível. Ainda assim, não é exatamente uma profissão sonhada pela maioria das pessoas. O que cativou Carlos foi a reação dos familiares após o trabalho estar concluído:
— Num primeiro momento, pesou a questão financeira e o fato de que ia correr menos risco do que como motoboy. Mas, depois, foi coisa de paixão. Da primeira vez que levei um corpo para a capela, era uma restauração que eu tinha feito (quando a morte não é natural e há necessidade de reparos em alguma parte do corpo). A mãe do menino não conseguia acreditar. Me deu um abraço. Foi muito gratificante, porque era a última imagem que ela teria dele, né?
Em outra ocasião, ao preparar o corpo de um bebê que havia caído em uma piscina, Carlos teve dificuldade para selar a boquinha do pequeno. A solução foi pedir um bico para a família e deixar outros em suas mãos, dentro da urna.
— Ficou muito lindo o serviço. A família também ficou um tempo me ligando, mandando mensagem, agradecendo. Foi muito bom o que fiz. É uma situação triste, mas é uma forma de homenagear — comenta o tanatopraxista, com emoção.
Carlos se tornou professor do curso de tanatopraxia que a Funerária São Pedro criou como uma maneira de formar mão de obra qualificada. Antes da iniciativa, segundo a empresa, não era raro que um novo contratado desistisse já no dia seguinte. Com o curso, os alunos têm a chance de conhecer o ofício de perto e decidir se realmente desejam seguir nele. A estimativa é de que 30% já saiam das aulas com um emprego garantido.
A família também ficou um tempo me ligando, mandando mensagem, agradecendo. Foi muito bom o que fiz. É uma situação triste, mas é uma forma de homenagear.
CARLOS EDUARDO ALVES DE FRAGA
Tanatopraxista
Para Carlos, duas características são fundamentais para quem deseja trabalhar na área: ser detalhista e respeitar os mortos.
— Tem que ter respeito por aquele corpo que está chegando. Não interessa se foi morto por bandido ou por policial, não cabe a nós julgar. Chegou aqui, a gente tem que fazer o nosso trabalho da melhor forma possível para entregar para a família dele — pontua.
Migração de mão de obra
Entre pessoas de classes sociais que costumavam atuar em profissões como garçom, marceneiro ou sapateiro, Paulo Bruscato, gerente regional Metropolitano do Sebrae RS, observa uma migração de interesses.
Se antes muitos adolescentes não se viam como advogados no futuro, hoje essa é uma ambição comum – o que tem gerado uma lacuna nessas ocupações tradicionais. Em países ricos, essa demanda costuma ser suprida por imigrantes. Já no Brasil, a falta de profissionais permanece.
— Os jovens hoje buscam atividades que se conectem mais com seu estilo e propósito de vida. Então, para alguém ser marceneiro, por exemplo, ou isso é passado de pai para filho, ou o profissional não se renova. No Senai, por exemplo, há pouca procura por esse tipo de curso, porque o sonho do adolescente não é ser marceneiro — avalia Bruscato.
Essa migração ocorre mesmo quando o retorno financeiro em áreas como direito, administração ou tecnologia não é necessariamente maior. Como consequência, micro e pequenas empresas de diferentes setores — especialmente os ligados à indústria — enfrentam escassez de mão de obra.
— Os empreendedores estão acelerando muito, e a qualificação não está acompanhando, embora instituições como Senac, Senai e o próprio Sine façam o que podem. O que falta é uma estratégia, talvez governamental, um pouco mais sistêmica — destaca o gerente.
Na visão de Bruscato, com uma abordagem mais estratégica na formação de profissionais diante das transformações do mercado de trabalho, será possível qualificar de forma mais assertiva e alinhada às novas demandas.