Um dos grandes problemas da educação brasileira, o analfabetismo funcional será foco de atenção da gestão do presidente Jair Bolsonaro (PSL). O problema é grande: hoje, o Brasil está na 59ª posição em leitura entre 70 nações avaliadas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes de 2015 (Pisa) – o último divulgado – e só 35% dos alunos do 5º ano do Ensino Fundamental têm o desempenho esperado em leitura. A forma de combater o problema, no entanto, está sendo alvo de debate entre pesquisadores. O governo federal diz que é preciso mudar o método usado por professores brasileiros para ensinar crianças a ler e a escrever. A metodologia, porém, não é consenso entre a comunidade acadêmica.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece que crianças até o 2º ano do Fundamental estejam alfabetizadas. Uma das metas prioritárias para os primeiros 100 dias de governo é a criação do programa "Alfabetização Acima de Tudo". O documento, ainda não lançado, buscará reduzir as taxas de analfabetismo. Para isso, o Ministério da Educação (MEC) irá apresentar um método pedagógico "a partir de evidências científicas". Nenhuma mudança deve ocorrer já para este início de ano letivo, uma vez que o processo de elaboração de livros e cartilhas é demorado.
Na semana passada, em mensagem ao Congresso, Bolsonaro afirmou que vai promover a formação e a valorização do professor alfabetizador, "assim como a integração da família e do município na tarefa da alfabetização". A ideia seria facilitar o acesso dos professores às melhores práticas de como ensinar a ler e a escrever e desenvolver programas de leitura na família.
O MEC também criou uma Secretaria de Alfabetização, comandada por Carlos Nadalim, ex-coordenador pedagógico na escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina (PR), defensor da educação domiciliar e discípulo do filósofo Olavo de Carvalho. Em vídeo publicado no seu canal no YouTube chamado "Letramento: o vilão do analfabetismo no país", Nadalim afirma que um dos principais problemas nas políticas de alfabetização do Brasil é a perspectiva construtivista (segundo a qual o contexto da criança deve ser levado em conta) aliada ao letramento (estudo de como textos têm gêneros diferentes, aplicados em diferentes contextos). Para ele, o foco deveria ser no estudo da relação entre as letras e os sons (o método fônico).
GaúchaZH tentou contato com Carlos Nadalim na sexta-feira (1º), mas a assessoria do MEC afirmou que ele ainda não está atendendo a pedidos de entrevista. Seu posicionamento cristaliza mais um ponto no qual a gestão Bolsonaro pretende ser contra o establishment acadêmico. O debate entre técnicas de alfabetização existe há ao menos um século, mas estava de lado há alguns anos.
Método fônico x métodos globais
De um lado, defensores do método fônico afirmam que há estudos científicos apontando que o método é o mais adequado para o cérebro infantil – seria também mais organizado porque permite cartilhas com instruções a serem seguidas. Do outro, defensores de métodos globais (envolvendo várias técnicas) dizem que a discussão sobre qual a melhor técnica é ultrapassada – que o melhor é aplicar várias metodologias e construir a aula conforme o desempenho da turma.
A briga para descobrir qual a melhor forma de alfabetizar também está presente em outros países, como Estados Unidos (veja entrevista com a professora Catherine Snow, da Universidade de Harvard) e Reino Unido, onde o conflito recebeu o nome de "reading wars" (guerra de leituras). Na Finlândia, a escola primária alfabetiza com as duas estratégias: focando em fonética, mas também utilizando compreensão textual do primeiro para o segundo ano. Na Austrália, os currículos são elaborados pelos Estados, mas a alfabetização é trabalhada ao lado de interpretação textual, sob a perspectiva do letramento, conforme informou o Ministério da Educação do país a GaúchaZH.
Em um país continental como o Brasil, a alfabetização não segue regra: às vezes envolve apenas uma técnica, às vezes envolve várias (método global). No passado, métodos sintéticos – focados na relação entre sons e grafia, incluindo o fônico, mas também o silábico e o alfabético – eram os mais comuns. Contudo, a partir da década de 1980, a perspectiva mudou com a aplicação aos estudos brasileiros em alfabetização das pesquisas do psicólogo Jean Piaget.
Segundo o suíço, o foco de atenção de qualquer indivíduo começa do maior para o menor – ou seja, primeiro, focamos no todo e depois nos detalhes. Em sala de aula, alfabetizadores começaram a defender, por consequência, que o aprendizado da leitura e da escrita deveria começar do significado de palavras ou frases, para depois partir aos "detalhes" – os sons de cada letra. A partir daí, os métodos analíticos começaram a ganhar popularidade defendendo que a leitura é um ato global. O letramento (ensino dos vários contextos de uso de um texto) ganhou força.
Relação entre fonemas e letras
Um dos maiores defensores do método fônico no Brasil, o ex-secretário-executivo do MEC (1995) e presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Oliveira, afirma no livro Alfabetização no Brasil que misturar texto com letra é um equívoco. Em entrevista por telefone, ele concorda com a importância de ensinar interpretação textual, mas sustenta que o foco inicial da alfabetização deve ser a relação entre entre fonemas e letras – trabalhar tudo ao mesmo tempo, diz, confunde as crianças.
— Construtivistas dizem que você não pode ensinar fora de contexto. Isso ofende uma característica humana que é a limitação da capacidade cognitiva. Há evidências mostrando que, se você mistura dois objetivos, há uma sobrecarga cognitiva da criança e ela não aprende nenhuma coisa. Ela deve, sim, ter aula de leitura e interpretação de texto, mas em outro momento, separadamente. A maior parte do primeiro ano da escola tem que ser para a alfabetização, focando na relação entre grafema (letra) e fonema, e depois trabalhar interpretação. Ao mesmo tempo, é claro que o método sozinho não vai salvar a educação brasileira, há questões estruturais — defende o pesquisador, também doutor em Educação pela Universidade da Flórida.
Para a Associação Brasileira de Alfabetismo (Abalf), o governo não deve tratar um método como "milagroso". Presidente da entidade, a professora Isabel Frade diz que o letramento, criticado por Nadalim, não é um método de alfabetização, mas uma perspectiva teórica que constata que a escrita é usada em diferentes contextos. O resultado prático é que as crianças sejam expostas a vários textos para aprenderem que, de um jornal, não há ficção e, de um romance, há histórias de mentira.
— O método fônico traz exercícios de pronunciar isoladamente cada fonema, o que é cansativo e repetitivo. Soletrar cada letra da palavra "bola" tira o sentido da aprendizagem. Há outros jeitos, como usar textos que as crianças conhecem e pedir para elas observarem as palavras que começam ou terminam da mesma forma: ver, por exemplo, que "cabelo" e "carinho" começam com a mesma sílaba, então têm uma semelhança na grafia e no som. Dá para aprender sem treinar apenas o fonema isoladamente — afirma a educadora, que ajudou a elaborar a BNCC, documento criticado por João Batista Oliveira.
Professora defende que outros aspectos merecem atenção
Professora de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora do livro Práticas pedagógicas em alfabetização: espaço, tempo e corporeidade, finalista do prêmio Jabuti de 2013, Patrícia Camini diz que o secretário Carlos Nadalim confunde teorias "da forma esperada de um aluno de graduação, não de um secretário nacional de Alfabetização". Ela também sustenta que o problema do analfabetismo funcional brasileiro não é o método, mas uma série de condições como a falta de estrutura de escolas e de valorização da carreira docente.
— De fato, a alfabetização depende que a criança aprenda quais são os sons que se relacionam aos grafemas da língua portuguesa. Isso é fato para todos os métodos. A questão é que o método fônico coloca uma ênfase bastante grande nos fonemas. O problema é que isso nega o acesso a textos para crianças sem estímulos culturais da língua escrita em casa. As crianças de contextos vulneráveis terão um ensino extremamente restrito só com doses diárias de extratos fônicos da língua — critica.
— Esse debate está funcionando como uma cortina de fumaça que tira o foco dos principais problemas da alfabetização nas escolas públicas, que são de diversas ordens, como infraestrutura precária das salas de aula, formação linguística com carga horária ainda muito pequena nos cursos de licenciatura em pedagogia e baixa atratividade da carreira docente (não se consegue manter profissionais motivados por muito tempo) — acrescenta.
Para entender melhor a discussão
O que é o método fônico
É um tipo de método sintético, cujo foco é partir das menores unidades da escrita (letra, sílaba, palavra) para depois chegar ao texto. Há outros métodos sintéticos, como o alfabético e o silábico. Exercícios fônicos com as crianças envolvem pedir que elas falem os sons correspondentes às letras de uma palavra. Se o exemplo for "bala", a criança deve tentar falar cada letra separadamente: "b", "a", "l" e "a". É usado na alfabetização de cegos e surdos.
Existe método construtivista?
Não, essa é uma teoria segundo a qual o indivíduo tem uma memória de vida que o influencia ao aprender um conteúdo e que o professor deve descobrir como o conhecimento "velho" pode ajudar a aprender o "novo". Sob essa perspectiva, erros são indícios de um jeito de pensar, ao que o alfabetizador deve prestar atenção para saber onde intervir.
O que é letramento?
É uma teoria segundo a qual a língua é usada em diferentes contextos. Na prática, o aluno deve ser exposto a diferentes textos (poema, carta, jornal, ficção) para aprender a diferenciar o sentido de cada um. Ao fim, saberá usar a língua escrita em diferentes casos.
O que são métodos analíticos?
A ideia é que é preciso partir da estrutura para chegar à unidade – ou seja, trabalha a alfabetização ao lado da interpretação de texto e da compreensão de cada gênero textual, para que a criança visualize porque está aprendendo o alfabeto. Neste caso, um exemplo de exercício é usar uma história já contada às crianças e pedir que elas procurem, no texto, palavras que comecem com a mesma sílaba. A partir daí, elas devem assinalar a sílaba e ver a pronúncia em comum. Se encontrem a palavra "casa" e "capa", a professora destacará que o "ca" é semelhante nas duas palavras.