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Dados estatísticos oficiais mostram que os argentinos aumentaram, nos últimos dois anos e meio, a migração à região sul do Brasil em busca de trabalho. São labores temporários e de exigência física em propriedades rurais do interior, como as colheitas de diversas culturas realizadas pelos safristas, o corte de árvores de reflorestamento e a apanha de aves, atividade que consiste em dominar o animal e colocá-lo numa gaiola, a caminho do abate.
O relatório mais recente do Observatório das Migrações (OBMigra), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, indica que a Argentina é, hoje, o segundo país em número de migrantes que ingressam na região sul do Brasil, atrás apenas da Venezuela, que lidera o fluxo com folga.
Outro dado é revelador: os argentinos ocupam o quarto lugar entre os estrangeiros com emprego formal na região sul. Somente entre janeiro e junho de 2024, o relatório apontou a existência de 7.663 trabalhadores desta nacionalidade no Sul, o que superou a totalidade dos números de 2022 e de 2023 (veja quadro abaixo).
— Acredito que os números são subestimados. Muitos argentinos estão trabalhando informalmente no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Temos ingresso clandestino na fronteira. E isso não aparece na estatística — avalia a procuradora do Trabalho Franciele D’Ambros, coordenadora regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete).
A Argentina possui extensa e porosa fronteira com os Estados brasileiros do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Há trechos em que a migração pode ser feita por pontes, como em Uruguaiana (RS) e São Borja (RS), mas há travessias de barco ou bote em pontos cegos e zonas de fronteira seca.
É o caso de Dionísio Cerqueira, no noroeste de Santa Catarina, apontada pelas autoridades como uma das principais portas de entrada do momento. O município catarinense faz fronteira com a cidade argentina Bernardo de Irigoyen, na província de Misiones, das mais empobrecidas do país vizinho, que segue em crise econômica.
As autoridades dizem que, em locais como Dionísio Cerqueira, a demora na emissão do visto temporário de trabalho é um incentivo para o ingresso irregular, sem passar pelo posto de fronteira da Polícia Federal. Alegando problemas com a burocracia, alguns entram como turistas, o que limita a permanência pelo prazo de 90 dias.
— Tem tido um fluxo mais forte de argentinos a partir de 2024. A informação que recebemos dos produtores é de que eles são mais responsáveis. A maior parte vem da província de Misiones. Eles nos contam que lá não tem emprego. São de baixa formação escolar. Migram para cá e conseguem receber mais do que na Argentina — diz Gerson Soares Pinto, chefe da Seção de Fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho no Rio Grande do Sul.
Os argentinos, diz a procuradora Franciele, migram para assumir tarefas “braçais” em que há falta de mão de obra. Estão trabalhando nas culturas da uva, alho, erva-mate, batata, extração florestal e na apanha de frangos.
— Muitos têm grupos de trabalho no WhatsApp. Um entra por indicação do outro, eles se comunicam e são feitas as propostas de emprego — diz Franciele.
Ingresso na colheita da maçã
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Nos últimos três anos, os argentinos abriram terreno na colheita da maçã, na região de Vacaria, nos Campos de Cima da Serra, onde predominam safristas de origem indígena e do norte e do nordeste do Brasil.
É o caso de Lucas Leiria, 32 anos, que chegou em 29 de janeiro à Agropecuária Schio, com matriz em Vacaria, para trabalhar até o final de abril na colheita da fruta. Leiria é do município de Oberá, na província de Misiones, e está no terceiro ano de safrista da Schio.
— Não temos muito trabalho na Argentina. Tenho amigos, conhecidos e vizinhos que estão vindo. Pretendo voltar em 2026 — diz Leiria, em entrevista por chamada de vídeo desde a sede da empresa.
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O setor da maçã é um dos mais organizados na contratação de mão de obra temporária, sobretudo nas indústrias e propriedades de médio e grande porte. O departamento de recursos humanos da Schio informa que a presença de argentinos ganhou volume em 2023, quando cerca de 300 tiveram a carteira assinada na empresa. Depois, em 2024, o número saltou para mil, mais do que o triplo. O dado de 2025 não está fechado, já que a colheita começou no final de janeiro e seguirá até maio, mas a expectativa é de redução, para algo em torno de 300 a 500.
A Schio aponta como motivo para a diminuição o fato de os argentinos estarem se espalhando por cidades do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, obtendo vagas de trabalho no setor de frigoríficos. Uma retomada no agronegócio na Argentina também é cogitada como causa.
Migração temporária
Diferente de migrações de países distantes, a Argentina e a província de Misiones fazem fronteira com o Brasil, o que permite o vaivém. Dados do OBMigra mostram que as saídas de argentinos do Brasil, em alguns anos, ficam próximas ou até superam o número de entradas — isso também é influenciado pelos turistas e moradores fronteiriços. O indicador sugere que a migração não é, pelo menos até o momento, de longo prazo.
— Eles ficam dois ou três meses, juntam um dinheiro e voltam — afirma Kleber Guedes, delegado da Polícia Federal em Santa Cruz do Sul.
Ele comenta que, na circunscrição em que atua, a presença de argentinos é mais notada em Arvorezinha, Ilópolis, Anta Gorda, Putinga e Fontoura Xavier.
— Nesses municípios, eles vêm para o corte de árvore de reflorestamento. É um trabalho pesado. Em geral, tem de dormir em acampamento, com barraca e lona no meio do mato. Pode não ter banheiro químico e água potável, por exemplo. Isso pode gerar ocorrência de trabalho em condição degradante — comenta Guedes.
Maioria trabalha em boas condições, dizem autoridades, mas resgates mantêm alerta
Após o resgate, em 2023, de mais de 200 trabalhadores da Bahia em situação análoga a escravidão na colheita da uva, em Bento Gonçalves, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em que as empresas envolvidas se comprometeram a seguir uma série de regras para a contratação de safristas.
As autoridades fiscalizatórias concordam que houve progresso depois do episódio e dizem que a melhora no ambiente de trabalho alcança também os argentinos.
— A grande maioria dos que encontramos está bem, satisfeita, e com o salário em dia. E os produtores também estão satisfeitos (com os migrantes) — relata Pinto.
A procuradora Franciele afirma ter localizado argentinos “em quase todos os locais que fiscalizamos” em 2025. Ela descreve ter encontrado alojamentos e alimentação adequadas, além de receber relatos positivos dos empregados.
Apesar disso, o alerta segue aceso porque, entre 2024 e 2025, 42 argentinos foram resgatados de situações análogas à escravidão nas culturas da uva, erva-mate, extração florestal e apanha de aves.
Os principais episódios aconteceram na vindima. Houve três recentes resgates na colheita da uva, dois deles em São Marcos e um em Flores da Cunha, na Serra, somando 34 argentinos em situação degradante.
Diferentemente dos casos em que os migrantes chegam por indicação de amigos ou por contatos diretos do produtor, as contratações que resultam em resgate costumam ter atravessadores. São arregimentadores de mão de obra que prometem boas condições de moradia e padrão salarial, mas a realidade na jornada laboral é outra. Nas últimas autuações, foram verificadas precariedades de alojamento e alimentação, ausência de banheiro e de água potável, pagamentos inferiores ao combinado e realizados com atraso.
— Alguns ficam muito indignados com as condições a que são submetidos e se sentem enganados. A fraude na proposta de trabalho pode configurar o tráfico de pessoas, além da condição análoga à escravidão (esses crimes são investigados pela PF). Foi o que aconteceu em um dos casos de São Marcos. Havia promessas de moradia e de salário que não se confirmaram ao chegarem aqui — avaliou Franciele.
Ela apresenta números da ação de campo para indicar que os problemas são restritos: em 2024, foram mais de 300 fiscalizados na região da vitivinicultura, com uma ocorrência de resgate de 22 argentinos.
— São situações que chamam atenção pela gravidade, mas não são maioria. Muito pelo contrário — analisa Franciele.
Resgates de argentinos em situação análoga à escravidão no RS entre 2024 e 2025
- São Marcos, em 2024, na uva - 22 resgatados
- Arvorezinha, em 2024, na erva-mate - 3 resgatados
- Arvorezinha, em 2024, na apanha de aves - 1 resgatado
- Anta Gorda, em 2024, na extração florestal - 4 resgatados
- Flores da Cunha, em 2025, na uva - 8 resgatados
- São Marcos, em 2025, na uva - 4 resgatados
- Total de 42 argentinos resgatados de situação análoga à escravidão
- Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)