Quando a rede Gerando Falcões surgiu, o ESG já estava inserido na organização, mesmo que seus fundadores não soubessem.
— Fomos sendo introduzidos nesse universo e, há uns sete anos, a agenda global do ESG explodiu e chegou ao Brasil com força. Foi quando começamos a trabalhar esses pilares, a identificá-los na nossa metodologia de trabalho — conta Alex dos Santos, mais conhecido como Lemaestro, empreendedor social, diretor de Operações e cofundador do ecossistema de desenvolvimento social Gerando Falcões.
Hoje, a organização atua principalmente com o S, influenciando empresas a investirem em uma diversidade capaz de gerar resultados econômicos para todos os envolvidos. Confira a entrevista concedida a Zero Hora:
De que forma o conceito ESG está inserido na Gerando Falcões?
A mais óbvia é essa coalizão da Gerando Falcões, ou essa colaboração, essa construção de pontes que a Gerando Falcões tem com as empresas, de poder conectar o time dessas empresas às favelas. Principalmente voltado à questão do S do ESG, para que elas se conectem de perto com as situações de pobreza e de vulnerabilidade e que as soluções que essas empresas criam através dos seus institutos ou o investimento que elas fazem via Gerando Falcões ou via outras organizações possam ser o mais efetivo possível. Porque uma coisa é você conhecer a solução de fora e outra é você trazer uma solução de fora sem conhecer a realidade. Outra coisa é você construir uma solução em conjunto com as pessoas que estão vivendo essa realidade. A Gerando Falcões dá essa possibilidade para as empresas, principalmente nos programas que temos do Favela 3D, que é essa favela digna, digital e desenvolvida que tem a ver com a questão da moradia e do desenvolvimento humano das pessoas. Outra forma que o ESG está inserido na Gerando Falcões é dentro do nosso próprio formato de trabalho. A Gerando Falcões hoje é uma empresa de 300 colaboradores e somado às organizações sociais, às nossas regionais, que atuam no Brasil inteiro, chega a quase mil pessoas. Também trabalhamos práticas de governança que sejam cada vez mais respeitosas, eficientes e transparentes. Também damos formação para empresas privadas na frente de ESG. Temos um curso na Falcon University para formar empresas para que elas melhorem as suas práticas ESG. A Falcons University é uma universidade que foi criada para formar líderes sociais, para que eles pudessem ser capacitados na frente de gestão, de sustentabilidade, de inovação, de impacto. E eles, por meio dessa capacitação, conseguem atingir maturidade organizacional, para conseguir captar recursos e tornarem as suas organizações mais sustentáveis. Temos duas mil lideranças no Brasil inteiro que passaram por essa capacitação e que fazem parte da nossa rede hoje. Estamos em todos os Estados do Brasil e em um pouco mais de cinco mil favelas por meio dessas ONGs. Dentro da Falcons, criamos outras frentes de capacitação e fomos entendendo, dentro dos próprios programas de inclusão produtiva, qualificação profissional, empregabilidade, que as empresas não estavam tão bem preparadas para receber o público. Criamos, por esse motivo, um curso de ESG para empresas e que depois foi se ampliando. E, a partir desse curso, fizemos trabalhos voltados à questão do meio ambiente. Há também empresas que mudaram sua matriz de materialidade, construíram núcleo de recrutamento e seleção para pessoas de periferias e de favelas.
Qual o efeito da aplicação em empresas, principalmente do S, e como isso impacta os moradores de comunidades?
A iniciativa privada, assim como o poder público, tem um poder de transformação muito grande. Tanto no sentido de dar para as pessoas oportunidade de geração de renda, e renda é muito importante para impactar positivamente as favelas, mas também tem um poder de influenciar a economia, de influenciar governos. Quando, de certa forma, influenciamos a iniciativa privada a pensar o social de dentro para fora, de baixo para cima, criamos uma possibilidade de inserir dentro dessas empresas pessoas que outrora não seriam inseridas, que é o caso de uma das empresas que trabalhamos, que criou esse núcleo de empregabilidade só para pessoas negras, de periferias e de favelas, e que existe até hoje. Como também, na hora de influenciar políticas públicas, a força da iniciativa privada e do terceiro setor também pode fazer com que as políticas públicas tenham mais aderência e ser mais eficiente no cuidado com esse público de periferia e de favela, para além do investimento financeiro que elas podem fazer para que esse impacto seja gerado por meio das organizações sociais. Conscientizar as empresas de que existe um terceiro setor de periferia e de favela de pessoas que têm organizações sociais em territórios, às vezes, até extremamente remotos e conectar as empresas a essas organizações que outrora nem estavam no mapa de visibilidade delas, também é uma coisa que fazemos no contexto da Gerando Falcões. Isso faz com que a gente consiga capilarizar o nosso impacto em muitas favelas no Brasil. Temos um programa de aceleração que empresas e empresários investiram em organizações sociais durante quatro anos consecutivos, líderes de favelas, dentro de territórios de favelas, de ribeirinhos, de sertão, e isso gerou um impacto. Conseguimos, por meio desses programas e da rede, atender 756 mil pessoas.
O que falta para avançar na implementação de práticas ESG em corporações, empresas, etc? Como fazer para que essa implementação não seja meramente reputacional?
Costumo dizer que na periferia e na favela existe um potencial adormecido ou descriminalizado que as empresas perdem muito e não absorvem. Um favelado tem várias das habilidades, por exemplo, que uma empresa precisa para ter mais resultado, tanto de qualidade quanto de números. Por exemplo, na favela, quando você vive a escassez, você vive a falta de recursos, você tem que inventar recursos, você tem que se virar nos 30. É a família que tem um salário mínimo e tem que sustentar uma família inteira, é a criança que cresce sem ter um brinquedo, sem comprar um carrinho e tem que fazer um carrinho de madeira, tem que construir a pista no chão de terra. Tudo isso vai criando nessa pessoa uma série de habilidades que, em si, é absorvida por uma oportunidade de educação, por uma oportunidade de emprego. Essa pessoa transfere essas habilidades para as empresas, ela vai ser uma das pessoas mais inovadoras, criativas, que resolve problemas e que leva essa empresa para o objetivo dela. Acho que tem uma primeira coisa de ganho e de avanço para as empresas, que é absorver para dentro do seu corpo de colaboradores, e não só em subemprego, mas de dar oportunidade para que essas pessoas trilhem suas carreiras dentro dessas empresas. É um ganha-ganha extremamente poderoso. Precisamos criar uma agenda e as empresas precisam estar atentas para isso, de ampliar o conhecimento e a cocriação nos territórios de favela. Existe uma questão que às vezes as empresas não sabem como fazer, não sabem como chegar, não sabem como direcionar bem esse recurso. Quando fizemos o curso de ESG com algumas empresas, percebemos isso nitidamente durante o decorrer do curso, que existia boa intenção, existia boa vontade, mas o recurso ficava direcionado às vezes ali para duas, três organizações famosas, que tinham uma certa imagem, mas que não necessariamente aquele recurso estava sendo bem aproveitado, porque às vezes o projeto não era um projeto que impactava tão profundamente aquela pessoa que está lá no alto do morro, numa situação de vulnerabilidade, ou que está numa situação de ribeirinho, ou que está no sertão da Paraíba, por exemplo, porque as soluções que estavam sendo levadas para esses territórios não tinham tanta efetividade. Acho que precisamos fazer com que as empresas criem essa prática de como construir com os territórios. Quando falamos um pouco de governança, de diversidade, de equidade, dentro das empresas, é entender que o diferente é necessário para que a gente seja mais inovador, mais disruptivo, para que essa empresa seja mais poderosa, mais humana, para que ela entregue mais resultado, eu acho que é fundamental se abrir para a diversidade, se abrir para o diferente, ter uma prática de gestão de pessoas e de governança que não exclui, mas que inclui, que tenha inclusão como uma pauta poderosa, porque isso impacta no resultado. Se ela tiver pessoas diferentes, que pensam diferente, que têm vivências diferentes, e ela valorizar isso dentro da sua companhia, ela também vai atingir resultados positivos econômicos. Precisamos evoluir na cocriação com a favela, precisamos evoluir na diversidade e precisamos evoluir na forma como enxergamos os talentos da favela ocupando posições de relevância dentro dessas empresas.
Dar oportunidade para que essas pessoas trilhem suas carreiras dentro dessas empresas é um ganha-ganha extremamente poderoso.
LEMAESTRO
Co-fundador da Gerando Falcões
A Gerando Falcões tem atuado em cidades atingidas pela enchente aqui no RS. Como está sendo esse trabalho?
Antes da tragédia, a gente já estava trabalhando a implementação de favelas 3D no Rio Grande do Sul, que é o nosso programa que trabalha com uma pétala de oito soluções de combate à pobreza. A pobreza é multidimensional, então a solução também tem que ser multidimensional. Ela passa por saúde, por cultura de paz, por geração de renda, por moradia. Depois da tragédia, continuamos com uma agenda de reconstrução do Rio Grande do Sul, em parceria com algumas empresas, em parceria com o governo. Mas, dado que houve essa catástrofe toda, os territórios, inclusive, tem alguns que não foram recuperados. Estamos, nesse momento, redesenhando o formato e o modelo da atuação para a reconstrução do Rio Grande do Sul, dado que é um Estado diferente do que era antes da tragédia. Estamos estudando, junto a nossa regional no Rio Grande do Sul, mapeando esses territórios, voltando a fazer diagnóstico, entendendo a atual realidade das pessoas. Que tipo de reconstrução será mais efetiva para essa nova realidade, onde reconstruir? Estamos numa fase de estudo para que a gente consiga realmente ser efetivo. Não podemos levar uma solução pronta. Temos que construir junto às autoridades locais, com as organizações locais e seus moradores. Estamos na fase de reconstrução do plano de captação de recursos. Já tem um bom recurso captado com algumas empresas, mas precisamos aumentar esse fundo para que a gente consiga aplicar de forma efetiva em qualidade esse projeto no Rio Grande do Sul. Se a gente emplacar um piloto, fazer ele funcionar com esses pilares, deixamos para o Estado uma metodologia co-criada para que isso seja escalado pelo governo local e pelas outras organizações que estão fazendo parte do trabalho.
Há termos como racismo ambiental, refugiados climáticos, que expõem a vulnerabilidade de pessoas que ocupam determinadas áreas. Como a Gerando Falcões enxerga esse tema? Percebe que é algo cada vez mais emergente?
Com certeza afeta o público de periferia, de favela, porque é geralmente o público sem acesso à moradia que foram morar onde puderam colocar suas estacas. Há uma questão de desigualdade social no Brasil que vem há mais de 500 anos. Já passou de 15 mil o número de favelas que existem no Brasil. Então, sim, essas pessoas estão em territórios pouco assistidos, com pouca infraestrutura, ou às vezes sem nenhuma, onde geralmente nessas mudanças climáticas e nessas tragédias são as pessoas que são mais afetadas. Quando aconteceu a tragédia no litoral de São Paulo, começamos, primeiro, a atuar junto a UNOS, uma organização que trabalha especificamente em tragédias, não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Criamos um curso de capacitação para trabalhar a questão da prevenção nas comunidades e também treinar pessoas nas favelas tanto para identificar uma possível tragédia, quando ela está para acontecer, como para também comunicar e evitar o máximo possível que essas pessoas tenham suas vidas ceifadas. Também sabemos que energia limpa, que trabalhar economia circular, é super importante. Também temos um programa em que carregamos milhares de itens doados, de roupas, tudo que ia ser possivelmente descartado, que em algum momento, se a gente não vendesse, existiria uma necessidade maior de produção de peças novas. Arrecadamos anualmente quatro milhões de itens com esse programa. São quatro milhões de peças revendidas e isso cria um impacto gigantesco no meio ambiente. Queremos escalar isso para o Brasil inteiro, mas, sobretudo, temos tido uma aproximação muito forte com os governos e a gente tem levado para esses governos a metodologia de trabalho da Gerando Falcões nessas frentes. Porque a Gerando Falcões, como organização social, tem um poder limitado de alcance. Nosso alcance não é o mesmo alcance que o governo teria, por exemplo. Acho que a gente tem tentado influenciar as empresas e influenciar políticas públicas para que elas possam trabalhar ou replicar essas metodologias que, do nosso lado, têm funcionado. A iniciativa privada, o poder público, junto da sociedade civil e das organizações, podem fazer isso ser uma realidade no Brasil inteiro. Precisamos ampliar o trabalho de reconstrução dessas favelas ou de construção de comunidades que tirem essas pessoas desse território. É uma agenda que precisa acontecer nos próximos anos. Ainda vamos ver muito mais tragédias acontecendo e muito mais vidas sendo ceifadas porque a mudança climática já é uma realidade. Não tem como retroceder. Temos que trabalhar em todas essas esferas para minimizar ao máximo possível o impacto que as mudanças climáticas terão na vida das pessoas que estão em territórios mais vulneráveis
A agenda ESG sempre foi algo que esteve na Gerando Falcões ou foi surgindo essa necessidade, essa urgência?
Sempre trabalhamos os pilares desde a fundação, mas na época éramos muito imaturos e não sabíamos o que era o ESG. Na verdade, somos uma ONG que nasceu no extremo leste de São Paulo. Dois favelados e duas mulheres. A gente não sabia nem o que era o CNPJ, muito menos o que era o ESG. Com o tempo, uma das principais atividades no início da Gerando Falcões foi a de se conectar com as empresas e com os institutos inicialmente não para pedir dinheiro, mas para absorver conhecimento. Fomos sendo introduzidos nesse universo e há uns seis, sete anos atrás, a agenda global do ESG teve uma explosão e chegou no Brasil com bastante força. Foi quando a gente começou a intencionalmente trabalhar esses pilares, a identificar ele dentro da nossa metodologia de trabalho e, inclusive, a ensinar as outras organizações sociais e também poder contribuir com a construção disso dentro das empresas que são parceiras nossas ou que aderiram ao nosso curso. Teve uma trilha, uma jornada de desenvolvimento da própria Gerando Falcões.