Com o bolso dos brasileiros pressionado pela inflação nas alturas, Luiz Carlos Bresser-Pereira assumiu, em 1987, o cargo de ministro da Fazenda no governo José Sarney. Trinta e três anos depois, o fantasma do descontrole dos preços não assusta mais. Mas a economia segue colecionando dificuldades, aprofundadas em 2020 pela pandemia do coronavírus.
Aos 86 anos, Bresser-Pereira demonstra preocupação com o cenário atual. Professor emérito da Fundação Getulio Vargas (FGV), o ex-ministro é uma das principais vozes do desenvolvimentismo no país – a corrente defende a participação do Estado na economia.
Ele conversou com GZH, por telefone, sobre os desafios brasileiros, incluindo o baixo crescimento dos últimos anos e a elevada desigualdade social. A seguir, veja os principais trechos da entrevista com o economista, que também integrou o governo Fernando Henrique Cardoso, no comando de outras duas pastas (Ciência e Tecnologia e Administração Federal e Reforma do Estado).
A pandemia atingiu em cheio a economia brasileira em 2020. Como o senhor descreve o cenário para a área?
O coronavírus causou uma profunda recessão, não apenas no Brasil, mas em praticamente todo o mundo. Talvez só a China e algum país pequeno não tenham recessão neste ano. O Brasil foi bastante atingido, mas não foi o campeão sob esse ponto de vista. É que houve grande gasto com o auxílio emergencial. Realmente, o auxílio sustentou a demanda dos mais pobres. Tem, portanto, papel importante para fazer com que a queda do Produto Interno Bruto (PIB) fique próxima de 5% neste ano, e não de 9%.
Agora, do ponto de vista da saúde, o Brasil foi um desastre na defesa da vida. Não falhou completamente só o governo federal. Também falharam os brasileiros. Faltou o espírito de solidariedade. Faltou o espírito cívico e republicano que nos obriga a ter uma ação individual muito mais forte, não só se fechando em casa sempre que possível, mas também usando máscara e tudo o mais. Com isso, os resultados são muito ruins. Estamos entre os piores do mundo. Uma tristeza. Esse é o quadro do Brasil em 2020. Mas também é preciso voltar a olhar para o quadro do país em 2014.
Por quê?
Porque, naquele ano, com a violenta queda nos preços das commodities (matérias-primas), o Brasil entra em uma grande recessão, que se soma a uma crise fiscal. O governo Dilma Rousseff perdeu o controle da parte fiscal. Gastou muito mais do que podia. Então, houve uma recessão que durou até 2016. A recuperação dos anos seguintes foi incrivelmente baixa, coisa de 1% ao ano (crescimento do PIB). Na verdade, o Brasil não saiu da crise econômica. Continua assim.
A taxa de câmbio, que se deprecia fortemente nas crises (o dólar sobe, na comparação com o real), depreciou-se também em 2014. Quando acaba uma crise, a taxa volta a se apreciar (o real se valoriza). Mas isso não ocorreu. A taxa de câmbio até está boa para a indústria (acima de R$ 5, incentivando exportações). Mas as empresas precisariam ter uma razoável segurança de que o governo vai ser capaz de manter essa taxa em nível satisfatório, perto de R$ 5 por dólar, no longo prazo. E isso as empresas não têm em absoluto.
Há uma perda de confiança, não só internamente, mas também no Exterior. O Brasil viu uma saída de dólares muito grande nesses últimos anos, especialmente em 2020. Só não é mais preocupante porque temos um superávit em conta corrente (mais exportações do que compras em dólar), já que as importações também caíram muito.
O Brasil historicamente convive com a desigualdade social. Economistas mencionam que o problema tende a piorar após a pandemia e com o fim de políticas como o auxílio emergencial. O quanto a situação preocupa?
Para mim, a desigualdade é o problema fundamental do Brasil. Nessa desigualdade, há um elemento racista também. Agora, como se enfrenta isso? A primeira coisa: não dá para diminuir a desigualdade sem crescimento. Como se reduz a desigualdade em período de crescimento? Há duas políticas fundamentais. Uma é desenvolver um Estado de bem-estar social (o Estado como agente da melhoria social e econômica). O Sistemas Único de Saúde (SUS), por exemplo, diminuiu a desigualdade de maneira profunda. Apesar de todas as limitações do SUS, o padrão de vida do povo melhorou de maneira respeitável.
Uma coisa é o gasto social, que é muito eficiente. Sempre mostro a comparação entre o sistema de saúde americano e o dos países europeus. O sistema americano é quase todo privado. Entre público e privado, custa 17% do PIB. Nos países ricos da Europa, onde o sistema é público, custa 11% do PIB. Então, é preciso continuar desenvolvendo o Estado de bem-estar social. A outra questão é ter uma reforma tributária que torne progressiva a cobrança de impostos (ou seja, maior incidência tributária sobre grandes patrimônios). Temos de fazer isso no Brasil.
O senhor destaca que as dificuldades econômicas vêm de antes da pandemia. Levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) indicou que o Brasil caminha para fechar esta década (2011-2020) com o pior desempenho econômico em pelo menos 120 anos. O resultado tão baixo está atrelado a quais fatores?
É preciso analisar o cenário no longo prazo. Tenho trabalhado muito sobre essas questões. O Brasil, desde os anos 1980, é uma economia semiestagnada. Por quê? O crescimento médio da renda per capita no Brasil, nesses 40 anos, foi de 0,8% ao ano. Enquanto isso, o crescimento nos países ricos foi de 1,7%, mais do que o dobro. Já o crescimento nos países em desenvolvimento foi de 3%. Ou seja, é quase uma estagnação no Brasil.
O país era um dos que mais cresciam antes de 1980. Desde então, avança muito pouco. A década de 1980 foi de estagnação, assim como a atual. Todos sabem a causa. Houve uma grande crise com a dívida externa (nos anos 1980). O Brasil foi tentar crescer com endividamento externo, o que é um erro, e entrou em uma grande crise. Isso implicou em uma grande inflação. No início dos anos 2000, houve um certo crescimento devido ao boom das commodities, beneficiando o governo Lula. Mas, em seguida, até 2014, as taxas de crescimento continuaram muito baixas.
Os projetos de privatização são os mesmos há vários anos. Quando o setor privado não é competitivo, o Estado é melhor do que o setor privado. O setor privado é insuperável quando é controlado pelo mercado, que só funciona quando há competição, e competição da boa.
Por quê?
Uma causa direta foi o baixo crescimento do investimento privado, além de uma grande queda do investimento público. A variável fundamental para o desenvolvimento econômico é a taxa de investimento, com a incorporação, naturalmente, de progresso técnico. O investimento público caiu muito porque a poupança pública caiu muito. Isso já aconteceu nos anos 1980, por causa de uma crise fiscal. Eu já falava disso. A crise que surge em 1980 se mantém até hoje.
O Brasil tinha uma espécie de poupança que financiava o investimento público. Era fundamental para o desenvolvimento. Já o investimento privado foi profundamente prejudicado pelo fato de que, nos anos 1990, o país fez a abertura comercial e financeira. Apoiei a abertura comercial à época, mas hoje não apoiaria, porque desmontamos, sem saber, mecanismo que neutralizava a doença holandesa (o termo define períodos em que o aumento das exportações de commodities valoriza a moeda local e causa perda de fôlego da indústria, que fica mais cara e menos competitiva em relação a concorrentes externos).
O que neutralizava a doença holandesa eram tarifas aduaneiras muito altas. Eu, inclusive, como ministro da Fazenda, em 1987, achei que isso era protecionismo. Mas não era tudo protecionismo. Quando foi feita a abertura comercial, as empresas passaram a ter uma desvantagem competitiva. Só aprendi isso quando ajudei a desenvolver o modelo da doença holandesa, que poucos economistas usam.
Outra questão é que a abertura financeira facilitou o aumento da taxa de juros para atrair capitais ao país. O governo teve mais uma vez a política equivocada de tentar crescer com poupança externa. O déficit em conta corrente provoca uma entrada adicional de capitais em relação à saída. Essa entrada aprecia a taxa de câmbio no longo prazo (real sobe ante o dólar). Há uma desvantagem competitiva muito grande para as empresas. Agora, como isso pode ser resolvido? Em primeiro lugar, é preciso ter um diagnóstico.
Que tipo de diagnóstico?
Não só economistas liberais, mas também desenvolvimentistas não falam sobre a doença holandesa. Continuam acreditando que é possível crescer com endividamento externo. São crenças absolutamente falsas. Economistas liberais não se incomodam com o fato de o investimento público ter caído, porque não seria a função do Estado investir. É uma bobagem. O Estado deveria investir no setor de infraestrutura e em setores não competitivos. O resto, claro, deve ser feito pelo setor privado.
Quando há competição, o privado é muito mais eficiente. Os liberais não se interessam pelo investimento público. Já os desenvolvimentistas antigos se interessam, gostariam de que houvesse. Mas, ao mesmo tempo, dizem que é preciso manter a demanda agregada. Adotam o que chamo de keynesianismo vulgar: promover déficit público o tempo todo, algo crônico. Além disso, mas com razão, dizem que é preciso voltar ao Estado de bem-estar social.
Essa foi a grande coisa que fizemos depois da transição democrática de 1985. Realmente, passamos a investir muito mais em educação e saúde. O SUS é a grande realização da democracia brasileira instalada em 1985. Agora, isso custa caro. Ou seja, temos de financiar o Estado de bem-estar social e, ao mesmo tempo, apresentar uma poupança para financiar investimentos.
Parece que nem a esquerda e nem a direita estão dispostas a fazer isso no Brasil, o que é uma tragédia. Com a covid-19, governos emitiram moeda para financiar políticas. O Brasil não usou esse financiamento monetário. Isso traz um custo muito grave para o país, porque a dívida pública, que já estava alta, vai para 100% do PIB. Então, precisamos pensar em como financiar investimentos públicos por meio do financiamento monetário, com o acompanhamento cerrado do Conselho Monetário Nacional (CMN), que só liberaria recursos desse tipo quando não houvesse claramente ameaça de inflação.
Na visão de críticos à ideia, a emissão de moeda poderia gerar alta na inflação. O senhor não vê esse risco, então?
Continuo achando que é por aí o caminho. Houve, de fato, um pequeno aumento na inflação recentemente, mas não foi causado pela emissão de moeda. Emissão de moeda não causa inflação. O que aumentou a inflação foi o auxílio emergencial no país. Cresceu a demanda por alimentos, elevando os preços. É uma inflação passageira. Não creio que tenha vindo para ficar. Nem tudo é ruim na economia brasileira.
Por quê?
O bom é que a taxa de juros, que era absolutamente escandalosa, permitindo transferência de recursos para rentistas, caiu para nível civilizado (a Selic está no menor patamar histórico do país). Isso permitiu que a taxa de câmbio se depreciasse (alta do dólar na comparação com o real), até um pouco demais. O problema todo é a sustentação disso. Até que ponto o Banco Central vai manter a taxa de juros baixa? Até que ponto a taxa de câmbio ficará competitiva? Na teoria do Novo Desenvolvimentismo, que venho elaborando, há uma ideia de que você deve manter as contas equilibradas, tanto a fiscal quanto a externa. Além disso, a teoria propõe que se administrem cinco preços macroeconômicos.
O que se faz, desde a criação dos bancos centrais, é administrar a taxa de juros e a taxa de inflação. São os dois preços macroeconômicos. Agora, há outros três preços fundamentais: a taxa de salários, a taxa de câmbio e a taxa de lucro. Numa economia capitalista, o fundamental para a indústria é uma taxa de lucro satisfatória. Ora, para você ter uma taxa de lucro satisfatória, você precisa que sua taxa de salários não cresça mais do que a produtividade. Os empresários sabem disso. Tem outra coisa: a taxa de câmbio precisa estar competitiva. Se não estiver, será mais fácil importar produtos, atingindo o lucro das empresas no Brasil. É preciso que o governo realmente procure manter a taxa de juros relativamente baixa e que busque manter a taxa de câmbio competitiva.
O que é uma taxa de câmbio competitiva?
É aquela que faz as indústrias com a melhor tecnologia existente no país serem competitivas.
Analistas esperam melhora na economia brasileira em 2021, apesar das incertezas geradas pela pandemia. Qual é a avaliação do senhor para o próximo ano?
É muito preocupante o cenário para o próximo ano. É muito difícil fazer qualquer previsão. A pandemia não está resolvida, e nada indica que vai estar até o final do ano. Até termos uma vacina para todos, vai demorar. Dessa forma, o auxílio emergencial vai precisar ser retomado, não com R$ 600, mas com R$ 300. É importante. Isso representa um déficit público enorme, o que é péssimo, mas há uma questão de sobrevivência das pessoas e de manutenção da economia. Os países ricos fizeram políticas muito inteligentes, criaram subsídios para as empresas.
De qualquer forma, se for mantido o auxílio, a economia se equilibra do ponto de vista macroeconômico. É claro que a dívida continuaria aumentando, e precisamos encontrar solução para isso. Temos de pensar na emissão monetária também, além de sermos responsáveis fiscalmente. Acho a responsabilidade fiscal extremamente importante. Não vejo contradição entre responsabilidade fiscal e emissão de dinheiro, quando a emissão é muito bem controlada.
O Estado precisa retomar o investimento. É fundamental. Os projetos do governo para privatização são os mesmos há vários anos. Quando o setor privado não é competitivo, o Estado é melhor do que o setor privado. O setor privado é insuperável quando é controlado pelo mercado, que só funciona quando há competição, e competição da boa. Inventar competições artificiais, como no setor elétrico, não dá. Os resultados são muito ruins.
Temos uma estagnação de longo prazo na economia. Precisamos de bons governos, e nem sempre temos tido. Nos últimos 10 anos, foi um desastre. Do governo Dilma em diante, foi um desastre.
Como é possível enfrentar o problema do alto endividamento público no país?
A primeira coisa é manter a taxa de juros baixa, como no restante do mundo. Quando o país tem taxa de crescimento superior à de juro, a dívida pública vai caindo em relação ao PIB. Segundo, é preciso ter responsabilidade fiscal. Terceiro, usar com muito cuidado e controle a emissão monetária para termos investimento público. É uma coisa controlada, pequena, mas bem importante. O Brasil precisa abandonar o regime liberal e voltar a ter um Estado desenvolvimentista. Desenvolvimentista e responsável.
O senhor foi ministro nos governos de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Há algum desafio no Brasil atual que guarde semelhança com os períodos em que o senhor atuou no setor público?
Eu entrei no governo Sarney no meio de uma crise brutal, o colapso do Plano Cruzado. A inflação era de 15% ao mês. O país estava quebrado, em moratória internacional. Estados e empresas também estavam assim. Durante o ano de 1986, houve um período em que as vendas de empresas e as receitas de Estados aumentaram muito. Eles também aumentaram as despesas, aí quebraram.
Peguei o governo nesse quadro, com alta inflação e crise da dívida externa. Nem uma coisa nem outra está aí hoje. O que temos é uma estagnação de longo prazo na economia. É um regime de política econômica neoliberal, em vez de desenvolvimentista. É a incapacidade de pensarmos com a própria cabeça. Agora, o desenvolvimentismo pode resolver questões se for bem governado. Se for mal governado, não resolve. Precisamos de bons governos, e nem sempre temos tido. Nos últimos 10 anos, foi um desastre.
Ou seja, o “desastre” ocorreu a partir do governo Dilma?
Do governo Dilma em diante, foi um desastre.
Como descreve o cenário político no país?
O Brasil se desenvolveu quando teve grandes líderes populares. O Brasil se desenvolveu com Getúlio Vargas. O Brasil teve um bom presidente com o Lula. Agora, o que vem aí? Tivemos a presença de Guilherme Boulos nas eleições de São Paulo. Escrevi uma pequena nota no meu perfil no Twitter e no meu site em que digo que está surgindo um novo grande líder popular. Ele (Boulos) realmente impressiona. Ainda não está maduro para ser presidente, mas está maduro para ser prefeito, governador.
Daqui a dois anos, haverá eleições presidenciais. Teremos oportunidade para outro grande líder político, que é o Ciro Gomes. Acho o Ciro Gomes um político de centro-esquerda nacionalista, desenvolvimentista, extremamente bem preparado para governar o Brasil. Já deveria ter sido presidente. O PT deveria tê-lo apoiado. Com os liberais e seus candidatos, o Brasil permanecerá semiestagnado por mais 40 anos.