Terapia, drenagem linfática, musculação e caminhada, skincare básico, com sabonete e protetor solar – o suficiente para dar conta – uma alimentação saudável alinhada às atividades de influenciadora gastronômica, leitura e meditação. Essa é a rotina de autocuidado de Crys Amorim, de 32 anos.
Ainda que a agenda costume estar cheia, a influenciadora carioca, que mora em Porto Alegre, não encara as práticas com preocupação, e sim como motivação para se sentir cada vez melhor. Para muitas mulheres, entretanto, o autocuidado tem deixado de ser apenas benéfico e se tornado uma autocobrança excessiva – que pode afetar negativamente a saúde mental, segundo especialistas.
Rotinas de exercício físico, muitas vezes, logo pela manhã; hobbies que acabam se tornando obrigações; o cuidado indispensável com a pele, com diversas etapas e produtos; tempo reservado para meditar e para ler em meio às tarefas que se acumulam na rotina – essas são algumas das atividades que as mulheres são incentivadas a dar conta diariamente. A questão, na maioria das vezes, está diretamente ligada à estética, cujo peso recai com muito mais força sobre elas.
Crys compartilha o que faz para evitar que a rotina de autocuidado se torne um fardo:
— Faço coisas que me agradam, que me deixam feliz, em paz, que é o que importa. Seria diferente se eu tivesse entrado em uma modinha de crossfit, nadar, correr, três exercícios ao dia. É uma rotina inalcançável para mim, que talvez pudesse não me fazer tão feliz quanto a minha, que pensei para mim.
Pressão social
Corpos “bonitos”, procedimentos estéticos compulsórios, dietas rigorosas, práticas de skincare, entre outros, são frequentemente vendidos como práticas de autocuidado, ressalta Eduarda Rosa, psicóloga e especialista em Terapia Sistêmica.
— Todas essas práticas podem, de fato, estar relacionadas ao bem-estar e à qualidade de vida, mas somente quando são compatíveis com as necessidades e o contexto de cada mulher. Afinal, a diferença entre remédio e veneno é a dose — afirma.
O autocuidado está atrelado a uma pressão social por um padrão ideal de beleza. O exercício físico é importante para a saúde, da mesma forma que o cuidado consigo mesma é fundamental – o problema é o excesso, que tem uma relação importante com desfechos de saúde mental, explica Analuiza Camozzato, chefe do serviço de Psiquiatria da Santa Casa de Porto Alegre:
— A preocupação com a imagem corporal, de uma forma excessiva, está associada a problemas de saúde mental, que vão desde baixa autoestima, isolamento social, depressão, ansiedade, transtorno alimentar tipo anorexia, pânico. E tudo isso tem muito a ver com esse ideal não realista e com a exposição à mídia, que acaba criando esse padrão não realista de beleza e uma pressão.
Se não consigo fazer algo que me propus a fazer naquele dia, reflito sobre o que estou sentindo, acolho aquele sentimento, e sei que, no dia seguinte, eu tenho uma nova oportunidade
CRYS AMORIM
Influenciadora
Há uma linha tênue entre o que as pessoas fazem por elas mesmas e o que fazem pelas outras, na visão da influenciadora.
— As redes sociais hoje em dia batem muito na tecla de mil exercícios por dia, alimentação totalmente saudável — reconhece.
Pressionada por questões estéticas como muitas mulheres, Crys chegou a enfrentar compulsão alimentar quando mais nova. Hoje, utiliza seu alcance nas redes não só para influenciar as pessoas com dicas gastronômicas e de experiências, mas para motivar os seguidores a buscar uma vida saudável dentro do possível, com equilíbrio.
Em seu perfil “diário” – que cresceu mais do que o “oficial” e já ultrapassa 180 mil seguidores –, compartilha seu cotidiano, os momentos de autocuidado e a jornada de emagrecimento, mostrando o que dá certo e o que dá errado na rotina – e reforçando que está tudo bem.
— Se não consigo fazer algo que me propus a fazer naquele dia, se não estava tão legal, reflito sobre o que estou sentindo, acolho aquele sentimento, e sei que, no dia seguinte, eu tenho uma nova oportunidade de fazer o que tinha pensado e está tudo bem. Não precisa se desesperar por causa de um dia. É um momento, aceita o que você está vivendo, respira e bola para frente — ressalta.
Mulheres são mais afetadas
Em todo o mundo, a cobrança afeta muito mais as mulheres, por uma questão cultural. Elas são mais suscetíveis porque, historicamente, seu valor ficou associado à aparência. Além disso, em geral, aderem mais a questões de saúde, recebendo influências positivas e negativas de pressões sociais, avalia Analuiza.
A resposta está em olhar para dentro, não apenas para fora, e entender o que é performance e o que é genuíno e necessário
ANALUIZA CAMOZZATO
Psicóloga
Antigas expectativas sobre as mulheres se revestem de novas formas, lembra Eduarda. Ainda espera-se que o cuidado e os afazeres domésticos sejam, em sua maioria, responsabilidade delas. Isso se soma a uma expectativa de que elas usufruam de todos os recursos disponíveis.
— Espera-se que a aparência seja condizente com a norma social, por meio de um discurso de autocuidado, que os problemas emocionais estejam plenamente resolvidos, como se isso fosse um cenário facilmente alcançável, e que todas as áreas da vida estejam “em dia”, como garantia de sucesso pessoal — aponta.
Consequências
Mulheres têm necessidades distintas, lembra Eduarda. Quando o que é apresentado como autocuidado se torna um padrão rígido e descontextualizado – muitas vezes, como um ideal de perfeição inatingível –, isso passa a ser problemático, transformando-se em fonte de culpa e estresse, alerta a psicóloga. A queixa da cobrança excessiva pelo autocuidado aparece frequentemente – muitas vezes, disfarçada no discurso de “não estou dando conta”.
A preocupação constante com a aparência leva muitas mulheres a perseguir ideais. A situação torna-se problemática quando passa a ocupar o tempo que seria de atividades prazerosas e de estímulos, como lazer, leitura ou interação social, alerta a médica. Assim, pode-se empobrecer do ponto de vista psicológico – e de repertório, ao consumir somente esses conteúdos. Tudo isso para, de alguma forma, ser aceita segundo esses valores, que se tornam centrais para elas como uma forma de validação social.
O verdadeiro autocuidado mora na sensibilidade de perceber as próprias necessidades, levando em consideração as possibilidades de cada momento.
EDUARDA ROSA
Psicóloga
Se a pessoa não se encaixa no padrão ideal, o que se experimenta são sensações de inadequação e exclusão, criando uma dívida interna eterna, segundo as especialistas. Essa experiência está presente em grande parte das mulheres, indica Eduarda.
Algumas irão se cobrar muito e terão um padrão rígido de metas – físicas e mentais. Para outras, a cobrança não necessariamente reflete em conduta para alcançar os objetivos. Ambos os casos, contudo, resultam nos sintomas e efeitos psicológicos já mencionados, conforme Analuiza.
A rotina de quem tenta dar conta de tudo acaba por se tornar exaustiva. Desta maneira, o que era para ser bom acaba se tornando ruim, já que o excesso é nocivo.
— Elas podem não estar verdadeiramente felizes. Às vezes, ficar irritada “se não consigo acordar não sei que horas, porque tenho de fazer exercício, e tenho de estar trabalhando e fazendo outras coisas”. Se daqui a pouco eu me olho e ah, apareceu uma gordurinha aqui que não era para ter. Isso leva a uma frustração com pequenas coisas e dar importância para o que não deveria — aponta.
As pessoas têm aderido a padrões impostos sem refletir se aquilo, de fato, é importante para elas, alerta a psiquiatra. Não existe, contudo, fórmula ideal aplicável a todos – é preciso individualizar.
É o que Crys Amorim tenta alertar aos seguidores sobre “copiar” rotinas. Muitas mulheres se comparam e querem imitar a realidade de outras pessoas que acompanham online – que pode nem ser verdadeira. A influenciadora defende refletir sobre o que faz sentido ou não para cada um.
— A gente se cobra para entrar no padrão da vida de outra pessoa, que tem outra perspectiva, outros objetivos, outra realidade — indaga. — Você tem de ser saudável dentro da sua realidade.
Sensibilidade é necessária
As possibilidades são frequentemente apresentadas como benefícios que precisam ser alcançados em nome da saúde, destaca a psicóloga Eduarda Rosa. Contudo, falta sensibilidade para entender como usufruir de maneira cuidadosa e genuína – qual é a dose certa, a frequência ideal, quando é necessário abrir mão de algo.
— O verdadeiro autocuidado mora na sensibilidade de perceber as próprias necessidades, levando em consideração as possibilidades que temos em cada momento, sem seguir normas externas — ressalta.
Seja gentil consigo mesma
É preciso lutar contra essas questões, defende Analuiza Camozzato. As especialistas apresentam sugestões de como evitar que o autocuidado se torne uma cobrança excessiva:
- Reduzir o tempo de exposição à mídia ou deletar aplicativos que abordem apenas conteúdos sobre imagem corporal;
- Ensinar as crianças que não se deve basear o valor na imagem;
- Tratar-se mais gentilmente, sem um padrão de cobrança tão alto, que não trará felicidade – pelo contrário, pode resultar em tristeza e ansiedade;
- Observar se há esse comportamento excessivo e conversar com alguém e buscar ajuda;
- Ter consciência de que o valor como mulher não depende da beleza;
- Questionar as expectativas impostas e escutar a si mesmo para entender o que, de fato, é cuidado.
A psicóloga recomenda refletir sobre o que é necessário naquele momento: cuidar da alimentação e praticar exercícios de forma consciente, visando o bem-estar, mas flexibilizar em um dia difícil? Ter tempo de qualidade com seus entes queridos, ou renunciar para ficar um tempo sozinha?
— A resposta está em olhar para dentro, não apenas para fora, e entender o que é performance e o que é genuíno e necessário — destaca.