Autora de poucos livros – são três, dois deles os premiados Caderno de Memórias Coloniais (2009) e A Gorda (2016), publicados no Brasil pela Todavia –, a portuguesa Isabela Figueiredo é dona de uma voz literária contundente cuja construção mescla ficção com ensaio e memórias pessoais.
Filha de um eletricista português radicado em Moçambique, ela cresceu vendo de perto as relações de poder estabelecidas entre brancos e negros no país colonizado. Levou as observações sobre o assunto à sua obra, aprofundando-as com reflexões sobre o corpo e a identidade a partir de questões como gêneros e padrões estéticos – como se estivesse fazendo uma síntese dos principais temas do debate público atual.
Nesta entrevista, além de colonialismo e racismo, ela, que também é jornalista e professora de língua portuguesa, aborda a literatura canônica nesse contexto e antecipa o que deve ser abordado na conferência de quarta-feira, a última do Fronteiras do Pensamento 2020.
Uma parte significativa da sua obra surge a partir de experiências pessoais. Qual a consequência, para você, de acessar memórias, reelaborá-las e expô-las, ainda mais envolvendo temas duros como racismo e desigualdade? Libertação, remorso – que sentimentos esse exercício traz?
Creio que a arte é resultado da experiência pessoal em um contexto social, desde sempre. As gravuras rupestres testemunham essa natureza. A experiência das coisas pode ser elaborada em um nível simbólico que mascare a experiência da primeira pessoa, mas a relação do artista com o mundo dificilmente poderá ser excluída ou negada da obra que esse artista construiu. No meu caso, a arte surge como tentativa de reconstrução de algo que me foi roubado: o Paraíso. E não sou a única. Crescer é nos tornarmos livres, mas essa liberdade pode cobrar um preço alto. Uso as vivências passadas e também as presentes, cruéis ou prazerosas, para me equilibrar emocionalmente. A arte é um labor e uma terapia. Por outro lado, vejo-a também como uma missão, um serviço prestado ao outro.
É impactante ler um livro como Caderno de Memórias Coloniais e depois ouvir você falar sobre seu pai e as relações entre os colonizadores e os povos nativos africanos. Você era apaixonada por ele, mas ao mesmo tempo diz que ele era racista, embora não de um modo maldoso: queria “civilizar” esses povos, com a convicção de que isso seria bom para eles. Fale um pouco mais sobre essa relação e sobre a persistência desse tipo de visão ainda hoje.
A relação do colono com o colonizado é profundamente paternalista, desde sempre. O meu pai via os africanos como crianças que nada sabiam da vida. E cabia a ele educar essas pessoas. Essa educação era necessariamente uma europeização. O colonialismo nega ou subestima a cultura do colonizado em detrimento da do colonizador, foi assim ao longo da história. Foi assim desde que os romanos dominaram a Europa e nela deixaram a sua marca, que hoje vigora. Se olharmos com atenção para África e para a América Latina, percebemos que o colonialismo europeu teve sucesso, porque ficou nos hábitos cotidianos das pessoas que habitam essas regiões. As culturas dos povos colonizados, na sequência do movimento a que se chamou de “descobrimento”, incorporaram a língua e os costumes dos colonizadores. Essa influência marcou o mundo sem alternativa, sem escapatória. Não se pode voltar atrás. Pode-se apenas reconstruir a identidade a partir dessa influência. De certa forma, todos os colonizados são também colonizadores de alguém. Não há seres humanos inocentes. É muito importante, para mim, passar a ideia de que meu pai não era um monstro. Porque não era mesmo. Ele foi o produto do tempo em que viveu, da formação que teve, das experiências que viveu a partir dos valores que lhe foram transmitidos na família e na sociedade como um todo. O que nós somos agora também é produto do tempo em que estamos vivendo. Meu pai não era inocente, tal como nós não somos, mas tinha um coração puro, disso sou testemunha. É das poucas pessoas realmente puras que conheci ao longo de toda a minha vida. A pureza é um dom raro. Poucos conseguem manter essa qualidade própria da infância que revela abertura, aceitação, fragilidade, bondade. O meu pai foi uma pedra preciosa. Foi também a minha guerra. Habituei-me a viver na antítese e no paradoxo.
Não vejo uma relação direta entre conhecimento puro e tolerância. Encontramos pessoas muito sábias e terrivelmente insensíveis. A tolerância depende sempre da capacidade de vestir a pele do outro, portanto chegará com a sensibilização. A educação tradicional durante muitos anos fez o trabalho contrário. Estamos a reverter essa tendência.
O colonialismo europeu é um assunto tabu, mas vem sendo abordado por livros recentes (como o seu Caderno de Memórias Coloniais) e também filmes (um deles inclusive intitulado Tabu, do também português Miguel Gomes). A própria questão dos refugiados, um dos temas candentes na atualidade, de algum modo dá seguimento à história colonial. O que, na sua opinião, essas novas abordagens e a revisão da questão podem nos trazer?
Neste momento da história, o colonialismo não mais é um assunto tabu. Ele está em cima da mesa. Acredito que Donald Trump, nos Estados Unidos, foi derrotado pela consciência cada vez mais aguda dessa opressão que existe entre os povos. O movimento Black Lives Matter e o visionamento do assassinato de George Floyd foram determinantes para que isso ocorresse. Permitiram que todos assistissem ao que é a negação do valor do outro. Negação de direitos, de humanidade. Essa pauta ganhou maior alcance. O colonialismo de classe, de raça e de gênero vigora com outras categorizações. Penso que governantes populistas do mesmo calibre de Trump sigam igual rumo nos próximos tempos. Entramos em uma era de questionamentos que não vai parar. É uma tendência crescente. Está acontecendo pelo mundo inteiro. A arte tem contribuído para acordar as pessoas, e os estudos acadêmicos que se baseiam nessas obras as complementam e as disseminam. O cinema está entre elas, é claro. Em Portugal e no Brasil temos um cinema bem marcado pelas questões do colonialismo, não é de hoje.
Ao mesmo tempo em que vivemos em um mundo com mais informações disponíveis, mais conectado e repleto de aproximações e dessa conscientização de que você fala, os discursos de ódio e a intolerância ganharam protagonismo na sociedade e estão representados em vários âmbitos do poder. Que relação você vê entre o conhecimento e a construção de uma sociedade tolerante?
O conhecimento nunca é suficiente por si só e apenas pode acrescentar, mas nem sempre serve para criar tolerância. Não vejo uma relação direta entre conhecimento puro e tolerância. Encontramos pessoas muito sábias e terrivelmente insensíveis. O conhecimento tem a capacidade de desenvolver espírito crítico e acordar o humanismo, mas nem sempre consegue fazer isso. Precisamos de trabalhos na área da educação cívica e da ética, que devem começar em contexto escolar o mais cedo possível. A tolerância depende sempre da capacidade de vestir a pele do outro, portanto chegará com a sensibilização. A educação tradicional durante muitos anos fez o trabalho contrário. Estamos a reverter essa tendência.
A reinvenção do humano depende de uma valorização da preguiça e do lazer em comunhão com o planeta vivo. Esse imaginário é algo que o Ocidente não respeita.
Os cânones literários do Ocidente são em geral brancos e masculinos, como comentou, em entrevista recente em GZH, o patrono da mais recente edição da Feira do Livro de porto alegre Jeferson Tenório, defendendo vozes variadas e não necessariamente eurocêntricas, inclusive africanas. Como foi a sua formação nesse sentido E qual a sua avaliação sobre essa questão?
Minha formação acadêmica e intelectual foi canônica, logo baseou-se nos grandes mestres da literatura ocidental, europeus mas também norte-americanos e latino-americanos. Por outro lado, sendo formada em Estudos Lusófonos, estudei literatura brasileira e africana. O panorama da literatura brasileira é riquíssimo. O mesmo não acontece com a África, por enquanto, o que é natural. Os países africanos onde se fala português são independentes há poucos anos e neles grassa o subdesenvolvimento, a pobreza e iliteracia. São nações ainda na infância, que talvez atinjam a adolescência daqui a meio século. Isso tem consequências na produção intelectual exatamente porque o cânone ocidental é incontornável e dificilmente tolera desvios, a menos que estes venham dos lugares de poder. A tradição literária oral própria das culturas africanas e indígenas não só não é de desprezar como é inspiradora de um cânone diferente. Paulina Chiziane (autora moçambicana) tem escrito ultimamente sobre suas experiências místicas na sequência de surtos psicóticos que sofreu e tratou com curandeiros moçambicanos, mas não publicou nada disso na Europa. Há um tabu sobre tudo o que não seja ocidental. Não é só necessário descolonizar territórios; é também urgente descolonizar a cultura e a arte.
Sobre o que será sua fala no Fronteiras do Pensamento? O que você pode antecipar para os gaúchos?
Minha fala enquadra-se no tema Reinvenção do Humano partindo da minha experiência e pensamento sobre colonialismo e racismo. Penso começar por explicar como é que alguém destituído de poder em princípio pode-se transformar num colonialista e em como colonialismo e racismo são interdependentes. Pretendo relacionar esses temas com a desumanização laboral criada pela industrialização e pelo consumo e mostrar que a reinvenção do humano depende de uma valorização da preguiça e do lazer em comunhão com o planeta vivo. Esse imaginário é algo que o Ocidente não respeita e sempre censurou os povos que considera menos civilizados. Os países do primeiro mundo investem na investigação espacial tentando descobrir como viver em Marte, após terem percebido que nosso planeta se encontra à beira da exaustão, do ponto de vista ambiental. Esses fundos, preciosos para investir na formação dos cérebros que podem sarar a Terra, estão sendo gastos com a exploração do espaço, que configura uma espécie de segunda vaga de “descobrimentos” e um novo colonialismo. Por outro lado, na Terra continua a morrer-se de pobreza material e emocional e as grandes vítimas dessa pobreza continuam sendo, na maioria, os não brancos. O que podemos fazer para alterar esse ciclo? Esse é o caminho que pretendo trilhar.