A série Ao Pé da Letra explora canções emblemáticas produzidas por artistas do Rio Grande do Sul. Nesta edição tributo, o projeto foca clássicos regionalistas de artistas que já partiram. O quarto episódio da nova temporada aborda Merceditas, de Ramón Sixto Ríos. Embora a composição seja argentina, a música se entrelaçou com o cancioneiro gaúcho.
A flor que foi murchando até morrer. A paixão transformada em uma lembrança triste. O sentimento de incompletude que atravessa os anos. O que é querer, o que é sofrer. Versando sobre um amor que não se concretiza, o chamamé argentino Merceditas atravessou fronteiras e se impregnou na música regionalista do Rio Grande do Sul. Sua letra narra uma história real.
Merceditas foi composta pelo músico Ramón Sixto Ríos (1913-1995), em 1940, e se tornaria uma das canções mais famosas do folclore argentino. A inspiração para a música surgiu um ano antes, quando ele foi se apresentar em Humboldt, na província de Santa Fé, centro-leste do país. Por lá, Ríos conheceu Mercedes Strickler Khalov (1916-2001), filha de imigrantes alemães, e a convidou para dançar tango. Ele nunca mais se recuperaria dessa dança.
Mercedes, também conhecida como Merceditas, chamava atenção por sua beleza e pelo seu espírito livre. Ríos ficou encantado pela moça, mas precisou seguir viagem e voltar para Buenos Aires. Os dois passaram a trocar correspondência diariamente. Aliás, segundo Mercedes relatou em entrevista, a letra de Merceditas contém trechos de uma carta que o músico escreveu.
Em 1941, Ríos foi até Humboldt com duas alianças no bolso e cheio de esperança no peito. Mas Mercedes recusou o pedido de casamento. Ainda assim, as cartinhas continuaram até 1945, quando a musa da canção parou de responder. Iludido, ele seguiu tentando contato, até que um dia percebeu que seu amor não era correspondido. Parou de escrever. Ríos se casaria com outra mulher, que morreria dois anos após o matrimônio.
Nos anos 1980, uma revista argentina publicou uma reportagem trazendo uma entrevista com Mercedes. Algo se reacendeu em Ríos, que convidou a antiga musa para ir até Buenos Aires. Ainda apaixonado, o músico novamente a pediu em casamento. E mais uma vez ouviu um “não”.
Os dois mantiveram contato até a morte de Ríos, em 1995. Um de seus últimos atos foi passar os direitos de Merceditas para a musa inspiradora. Seus bens também foram herdados por ela. Mercedes morreria alguns anos depois, vivendo ainda na casa de seus pais, sem nunca ter se casado.
Atravessando fronteiras
Ao longo das décadas, a história de amor de Ríos seria amplamente cantada pelos mais variados artistas e tocada em múltiplos ritmos. Pelo lado argentino, a canção seria regravada por nomes como Trío Cocomarola, Cuarteto Santa Ana, Los Chalchaleros, Horacio Guarany, Raúl Barboza, Sandro, entre outros.
Merceditas conquistaria intérpretes em outros países, vide a paraguaia Perla, o que inclui também o Brasil — com uma lista de artistas que vão de Gal Costa a Daniel. Pelo território brasileiro, dois Estados teriam uma relação carinhosa com a música: Mato Grosso do Sul, onde a canção é tida como um um patrimônio na terra onde o sertanejo prevalece, e Rio Grande do Sul.
Não foram poucos os artistas gaúchos que gravaram Merceditas: Renato Borghetti, José Cláudio Machado, Elton Saldanha, Wilson Paim, Rock de Galpão, Ernesto Fagundes, Luiz Carlos Borges, entre outros.
Borghetti, que apresenta uma versão instrumental da música em seu histórico disco de estreia, Gaita Ponto (1984), sublinha a versatilidade de Merceditas. Conforme o instrumentista, a composição de Ríos pode ser interpretada no palco de um teatro, em bailes, em festas, em casa com os familiares etc.
— As pessoas vão dançar e se divertir, se for tocada de uma forma bem festiva. Se for num teatro, o público canta junto por causa da letra que é bem conhecida — aponta Borghetti. — Na parte instrumental, há uma harmonia muito boa para o improviso, até para pessoas que não são ligadas à música gaúcha ou argentina. Por exemplo, tu explicas para um jazzista, e ele imediatamente entende.
O compositor e mestre em literatura Vinícius Brum crê que Merceditas repercutiu no Estado ao tocar nas rádios da fronteira. No caso, foi um processo natural e gradativo. Embora seja difícil apontar quem seja o principal responsável por essa "importação", o que pode se destacar é que o Grupo Querência gravou nos anos 1980 uma das versões mais conhecidas da composição de Ríos dentro do cancioneiro regionalista.
— Apesar da melodia ter a magia de grudar tanto no imaginário popular, o texto é absolutamente simples. Parece que aí a melodia faz toda a diferença — aponta o compositor. — Quando entram aqueles versos surgidos da cabeça do Sixto Ríos, apaixonado pela Mercedes, a gente percebe que aquela singeleza musical é indestrutível. Talvez por isso que Merceditas tenha andado tanto e até hoje estejamos falando dela.
Cantor, compositor e instrumentista, Luiz Carlos Borges conta que teve a oportunidade de conversar com a própria Mercedes, pouco antes dela morrer. Segundo o músico, ele estava participando de um programa de uma rádio de Paraná, capital da província de Entre Ríos e vizinha de Santa Fé, acompanhado de Raúl Barboza. Até que tocou o telefone e o locutor atendeu. Era Mercedes, uma ouvinte assídua. O apresentador, lembra Borges, comentou que ela ligava diariamente para pedir chamamés. Intrigado, Barboza perguntou se a Mercedes era aquela Merceditas. Sim, era a musa de Don Ramón, teria respondido o locutor. Borges descreve ter sentido um arrepio e relata que conversou com ela por cerca de 15 minutos.
— Contei para ela que eu tinha começado a cantar Merceditas com nove anos — recorda. — É uma música que também me acompanha, que está na minha caminhada musical. É uma canção que tem muito fôlego, ainda vai render muito por aí.
Merceditas
Qué dulce encanto tiene
Tu recuerdo Merceditas
Aromada florecita
Amor mío de una vez
La conocí en el campo
Allá muy lejos una tarde
Donde crecen los trigales
Provincia de Santa Fe
Así nació nuestro querer
Con ilusión, con mucha fe
Pero no sé por qué la flor
Se marchitó y muriendo fue
Amándola con loco amor
Así llegué a comprender
Lo que es querer, lo que es sufrir
Porque le di mi corazón
Como una queja errante
En la campiña va flotando
El eco vago de mi canto
Recordando aquel amor
Pero a pesar del tiempo
Transcurrido es Merceditas
La leyenda que hoy palpita
En mi nostálgica canción
Así nació nuestro querer
Con ilusión con mucha fe
Pero no sé por qué la flor
Se marchitó y muriendo fue
Amándola con loco amor
Así llegué a comprender
Lo que es querer, lo que es sufrir
Porque le di mi corazón