
Os estabelecimentos de Porto Alegre que repassam 100% do couvert artístico aos profissionais que se apresentam em suas dependências podem ganhar o selo Bar que Respeita o Músico, lançado no último 25 de março.
Trata-se de um reconhecimento para uma prática que não é comum: muitas vezes, o estabelecimento retém parte do valor do couvert.
O selo concedido pela prefeitura, que está previsto na Lei Municipal nº 14.015, de 8 de agosto de 2024, também determina que os estabelecimentos comerciais da cidade são "obrigados a divulgar, em local visível a todos os seus frequentadores, o percentual do couvert artístico efetivamente repassado ao artista".
Em seu site, a prefeitura justifica que a iniciativa pretende "valorizar e promover a dignidade dos artistas que se apresentam em bares e restaurantes".
Dois bares já receberam o selo
A lei vem de projeto de autoria do vereador Roberto Robaina (PSOL), que foi procurado pela Associação de Músicos da Cidade de Porto Alegre (AssomPOA). A cantora Lila Borges, presidente da entidade, relata que muitas pessoas não sabiam que os estabelecimentos ficavam com uma porcentagem do couvert, que, em tese, seria para os artistas. Segundo ela, geralmente os músicos recebem de 70% a 80% do valor.
— Por causa dessa desinformação e da nossa indignação de classe achando que isso não é justo, a associação entrou em contato com Robaina para a construção dessa lei municipal. É até uma lei de transparência, para o público saber para onde vai o seu dinheiro — diz Lila.
Até o momento, dois estabelecimentos receberam o selo: Bar do Alexandre, no Menino Deus, e Odeon, no Centro Histórico. Mais três devem receber o reconhecimento nas próximas semanas: Barriga no Fogão, no Santana; Bar & Pizzaria Vitrola, na Cidade Baixa; e Olho Mágico, no Bom Fim.
Lei não prevê punição
Lila, da AssomPOA, frisa que a ideia é que, nesse primeiro momento, sejam realizados eventos de entrega do selo, chamando atenção para os bares e para a iniciativa.
Os próprios estabelecimentos podem solicitar o selo no site da Secretaria Municipal de Cultura — só é possível obter um selo por CNPJ. Caso os músicos que tocam no local discordem, poderá ocorrer uma "situação constrangedora", sublinha a presidente da AssomPOA:
— Essa lei não prevê uma punição. Ficaria aquilo dos músicos dizendo uma coisa e o bar alegando outra. Não queremos perder tempo com esses bares que não fazem essa prática. Queremos justamente divulgar aqueles que respeitam o músico.
Ela observa que já houve estabelecimento que mudou de postura porque o selo geraria reconhecimento por parte do público e dos músicos:
— É uma valorização da cultura. A arte é maravilhosa, as pessoas se divertem trabalhando, mas é um trabalho igual a outro, que precisa ser pago. Todo mundo tem suas contas.
Segundo a assessoria da Secretaria Municipal da Cultura, ainda não houve denúncia de uso irregular do selo. A prefeitura estuda programar com a Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre (Procempa) uma restrição do CNPJ para emissão de novo selo ao estabelecimento que descumprir o regulamento.
O que dizem entidades
O presidente da Associação dos Empresários do 4º Distrito, Arlei Romero, diz que os estabelecimentos da região "não veem problema" com a iniciativa:
— A maioria dos estabelecimentos daqui combina um valor prévio com o artista, e aí tem o valor da cobrança do couvert. Caso o couvert não atinja aquele valor, eles complementam. Se o valor do couvert passar o valor combinado, eles repassam para o artista também.
Já Maria Fernanda Tartoni, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no RS (Abrasel no RS), pondera que acordos comerciais entre artistas e contratantes devem permanecer na esfera privada, sem interferência legislativa do governo.
— Embora cientes de que exploração por empresas não idôneas ocorra, a base é um contrato comercial. Na minha perspectiva como empresária e presidente da Abrasel, transformar isso em lei foi inadequado — analisa Maria Fernanda. — Entendo que existam casos de remuneração injusta, em que o artista recebe pouco apesar do alto faturamento gerado, mas legislar sobre acordos privados é uma abordagem complexa e potencialmente problemática.
A questão da contribuição espontânea
A lei não aborda o caso de bares que trabalham com contribuição espontânea, como é o caso do I Love CB, na Cidade Baixa. Criado em 2016 por Letícia Silveira, o estabelecimento se autocaracteriza como "bar de calçada", em que os frequentadores se aglomeram do lado de fora.
O atual proprietário, Roni Martini, estima que o local tenha recebido mais de mil shows até hoje, entre artistas de MPB, rock, blues, soul e folk. Por ser um espaço pequeno, o I Love CB só comporta apresentações com no máximo três pessoas tocando. Conforme Martini, é impraticável fazer a cobrança de couvert ou de ingresso com a atual estrutura do bar.
— Não fechamos a porta e não limitamos a entrada para poucas pessoas. Nosso público compra sua cerveja, curte uma parte do show, vai para rua, volta e se reveza — explica.
Assim, o estabelecimento paga um cachê fixo para os artistas e promove a contribuição espontânea, incentivando que haja doações conscientes diretamente na conta dos músicos.
— Normalmente, o I Love CB paga de 300% a 500% além da contribuição espontânea — sublinha.