Mata Doce começa com uma paulada, a primeira de muitas violências que a baiana Luciany Aparecida apresenta em seu romance de estreia. A protagonista é duas, Maria Teresa e Filinha Mata-Boi, que encara o animal prestes a abater na cena inicial. “Maria Teresa parou em frente ao boi vivo e arrancou sua careta. O animal perdeu seu sentido controlado de direção, mas não tinha mais como escapar. A mulher achava justo que a morte se apresentasse de frente. Quando ela encarava o boi, o sangue da vida ainda corria quente por baixo da sua carcaça.” A partir daí, o enredo vai e vem no tempo, ao longo de quase um século, para contar a história de uma e de outra personagem, interligando-as.
Em duas vozes narrativas, a autora centraliza os acontecimentos em Maria Teresa/Filinha e suas mães adotivas, o casal formado por Mariinha e Tuninha. Está no núcleo central da narrativa uma tragédia, ocorrida na véspera do dia do casamento de Maria Teresa e Zezito. A noiva está fazendo a prova do vestido quando um crime acontece diante do casarão do lajedo. O leitor sabe desde a sinopse que consta da orelha que uma tragédia logo lhe cruzará o caminho, mas o sumiço de uma peça central não deixa de ser um susto.
“Ao longe se via uma grande nuvem de poeira arribada pela fuga do carro branco do assassino. A areia desenhava no ar uma ave imensa que cobria o céu em carne viva.
Thadeu olhou no relógio de pulso e era meio-dia em ponto. Atinou força, desligou o carro e desceu, se jogando no chão com as mãos na cabeça. Ao seu lado, o tocador de gaita, as mães da menina e a madrinha. O animal de areia e vento revoava, empestava o ar de cheiro forte de carniça.
– Não! – a noiva gritava e abraçava aquele desgosto.”
O assassinato não é um mistério, tem desde sempre seu autor revelado, e impacta a trajetória da heroína a ponto de cindi-la. O sangue do morto que tinge o tecido bordado dará lugar ao sangue dos bois que ela carneia no curral todo sábado, decidida a vingar o crime.
Uma máquina de escrever acompanha Maria Teresa no passado e no presente: primeiro quando a jovem datilógrafa passa a escrever cartas sob demanda e depois como a companhia da velha nonagenária que não consegue se desvencilhar das dores há muito vividas. Mata Doce exige um leitor atento, capaz de montar as peças dessa trajetória nada linear.
“Estou hoje voltando a estas memórias como se não fosse eu. Como se não tivesse vivido nada disso. Como se não fosse eu a estar aqui agora com meus noventa e dois anos, ainda na mesma máquina de datilografia – já que máquinas de datilografia não envelhecem –, a contar esses casos desconformes. É maio novamente, é sempre domingo, nunca é sábado, porque sábado não existiu, aqueles tiros explodiram meu dia e para sempre ficou sendo domingo. O dia do casamento, que foi dia de velório”, escreve a baiana Luciany Aparecida, doutora em Letras que assinou outros títulos como Ruth Ducaso e vem sendo saudada com entusiasmo como nova voz promissora na literatura brasileira contemporânea.
Mata Doce é uma história de gente preta, crenças e práticas de terreiro, espíritos de antepassados e um tanto de fantasia, numa prosa lírica, rica na linguagem local desse rincão da Bahia – a ambientação lembra muito Torto Arado e Salvar o Fogo, do soteropolitano Itamar Vieira Junior. A rotina de poucos acontecimentos é pontuada por segredos revelados que unem pele a pele personagens de diferentes núcleos. Há um conflito, no pano de fundo, envolvendo a demarcação de terras e o acesso às águas do Rio Airá. Gerônimo Amâncio, o antagonista, homem branco opressor, coronel fazendeiro, ocupa posição decisiva na ação principal e tem um desfecho dramático, sendo devidamente punido. Lai chega grávida, procurando refúgio para ela e um lugar para abandonar o bebê, e se torna madrinha de Maria Teresa. Mané da Gaita e a cadela Chula, que atravessa décadas de vida, estão entre as figuras da comunidade.
A importância da escrita está também simbolizada na presença, na trama, de Úrsula, da escritora Maria Firmina dos Reis (1822-1917). Produção de 1859, o livro é considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil. Maria Teresa começa a ler o livro raro na biblioteca da cidade vizinha de Santa Stella até furtá-lo, com sua fuga desencadeando uma relação entre ela e a bibliotecária Belisária.
Compilado de amores e de despedidas, o romance é, sobretudo, uma história de mulheres – que amam e se despedem. São despedidas marcadas por vida e morte, por amores que transcendem um único plano.
Mata Doce
De Luciany Aparecida. Ed. Alfaguara, 304 páginas, R$ 69,90 o impresso e R$ 34,90 o e-book